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¿2010?




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Arguições internas...




Hoje faz uma semana que entreguei minha dissertação.
Não sem muita choradeira e resistência (meu orientador que o diga).
Várias pequenas coisas para corrigir que passaram pelos meus olhos insones e cegos de tanto (re)ler os mesmos trechos...
Pequenos pecados dispensáveis e irreparáveis por ora, mas que me fazem (re)pensar o quanto ainda escreveria diferente várias coisas.
Cada vez que pego o trabalho para (tentar) preparar a defesa, reluto.
Ainda tô de ressaca.
Tô sentindo falta do mar de papel na minha volta.
Me pego lendo “algum livro que pode ser útil para o trabalho” antes de dormir.
Não reconheço mais os azulejos brancos, no banheiro.
Acho que estou com alguma daquelas síndromes que os psiquiatras adoram.
No, no, no. Sou doente.
Alguma espécie de obsessão, compulsão, paranóia ou tudo junto misturado.
Não estou tendo disposição para imaginar muita coisa.
Assisti algumas bancas de colegas para analisar o comportamento das pessoas.
Mestrandos, arguidores e expectadores.
Na real, acho que não sei explicar o meu trabalho, nem o que eu constatei, nem o que eu conclui (ou se eu conclui). Eu sei o que vi, o que penso que vi e o que penso sobre o que penso que vi. Mas, na verdade, ainda não sei ao certo se foi exatamente sobre isso que eu escrevi.
E se eu escrevi algo diferente disso?
Será que o que eu leio nas páginas do trabalho é o que está ali escrito ou o que eu tenho na cabeça que era para estar ali (e que eu acho que está)?
O que eu devo explicar?
O trabalho que está entregue no papel ou o que eu vejo na minha imaginação acadêmica?
Como sei quando começa um e acaba o outro?
... ..... ...
Meu irmão diz que eu penso demais...
Talvez ele tenha razão...
Seguirei (i)lustrando minha armadura de juana darque
e imaginando algo que tenha (?!?) sentido a partir das minhas vozes interiores...
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E fora um ato preciso.
No meio de uma rua deserta. Na madrugada.
Os reflexos das luzes iluminando o asfalto molhado pela chuva fina
Que era jogada pelo vento frio e cortante contra um rosto impávido.
Diante da perplexidade um homem em pé. Rosto suado. Mãos trêmulas.
No lugar certo. No horário exato.

No cruzamento das duas grandes avenidas um carro.
Vidros escuros. Luzes apagadas.
No seu interior, duas silhuetas.
Uma delas ganha a rua
Passos rápidos e ombros encolhidos
Tentando evitar no seu rosto a agressão do tempo.
Olhar fugidio e sorriso sarcástico (ou o sarcasmo estaria no olhar de quem observa?)
Dá a volta no veículo. Olha o entorno. Abre a porta.
Dá passagem ao outro tripulante
Com a cabeça coberta pelo casaco de lã negra. Abraçam-se como que para se proteger da interpérie e dos olhares sedentos de uma felicidade ilícita. Atravessam a rua.

O homem mantém-se imóvel junto ao meio-fio, como a estátua que habita a marquise do prédio em frente.
Comprime os lábios. Cerra os punhos.
Balança a cabeça como que para varrer dos olhos a imagem que vê. Insiste em não crer.
Busca respostas para o inexplicável no inimaginável.

Um casal chega à calçada oposta. Ela descobre a cabeça diante da porta do restaurante, aberta por ele (trazendo o mesmo sorriso nos lábios).
Com a luz do interior do estabelecimento é possível ver o rosto dela.
O seu olhar terno e convidativo (seria realmente o seu olhar terno?)
O homem diante da cena sente um tremor passar-lhe pelo corpo todo. As faces latejarem. Pega do bolso da camisa um papel. Aperta entre o punho cerrado. Olha o relógio.
Leva a mão à cintura. Sente o frio mórbido da pistola. 13 projéteis intactos no pente. Diversas imagens passam por seus olhos em fração de segundo.
Já não sente a chuva cair. Seu corpo fora tomado de um torpor analgésico.
O momento é perfeito.

Um tiro. Seco na noite fria. Um corpo estendido na rua. Nenhuma testemunha.
Dentro do restaurante a mulher tem os olhos mareados
Olhando o anel de noivado
o homem lhe acaricia o rosto com um sorriso (terno?) nos lábios.
Em um das mãos defuntas uma pistola.
Na outra, um esboço rabiscado de poema:
“Desde que tu me deixara, a felicidade alheia me desespera.”
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Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

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A (in)crível maestria da academia (ou Ode ao Fracasso)

O aluno chega na sala atrasado, cheios de papéis soltos presos entre os braços junto à pasta semiaberta. Visivelmente esgotado, mas com certa agitação, entra na fila de alunos diante da mesa do mestre, para receber a avaliação do trabalho entregue na semana anterior, o qual ele passara toda a madrugada escrevendo. Tinha dúvidas acerca de suas construções mentais, se os pontos de “diálogo” que percebera entre os autores estavam corretos e, ainda, se suas reflexões a partir disso faziam sentido.
Ao chegar a sua vez, o professor entrega seu trabalho com um gesto mecânico, sem levantar os olhos da planilha e em total silêncio. Nas folhas, nenhum comentário ou rabisco à caneta. Apenas os caracteres negros de sua impressora que, as vezes, deixa falhas.
Em um misto de curiosidade, ansiedade e dúvidas, de chofre, o aluno pergunta ao professor o que ele havia achado do ensaio, se havia muitos pontos a serem revistos ou reconsiderados.
O mestre, do alto de sua sabedoria, daqueles que não pode perder tempo com bobagens ou ilações prolixas de alunos rasos (eis que reles), afirma com tranquilidade e distanciamento:
"- Teu texto, no geral, tá ok... Não tem muitas coisas para corrigir. Na realidade, eu já o tinha lido, pois tu já havia me entregue ele antes."
A afirmação soou como uma espécie de teste de sanidade. A(s) noite(s) não dormida(s) em frente ao computador poderiam ter-lhe afetado o senso de organização e ter feito com que entregasse o trabalho errado. Mas não. Não havia possibilidade. Afinal, terminara na manhã imediatamente anterior à entrega. Acompanhara a impressão com angústia, pelos ânimos lunares da máquina. Chegara atrasado na aula, mas entregara o ensaio como determinado. Por que o professor lhe dissera aquilo? Teria se confundido? Se equivocado no momento da avaliação?
O que o aluno não sabia (ou não podia crer) é o que o professor sequer passara os olhos sobre as folhas e que mentira sem quaisquer constrangimentos, afinal, era (tão)só um aluno só. E que mesmo procedendo assim com certa habitualidade, fazia questão de ser chamado pelo título antes do nome...

Dedicado a Miguel, o menino a-orientado e a Romualdo, o P(erfeito) H(ipócrita) D(edicado) que "o orienta".
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Em torno, há diferença*

Para ACP

Sexta-feira, 6 de novembro. Dia cinza e abafado, com um chuvisqueiro esporádico que não molhava nem refrescava. Nas ruas centrais, tráfego intenso de veículos sobre o asfalto úmido, do qual desprendia um vapor quente sufocante. Dia típico de Gotham City. Talvez mais caótico pela proximidade do anoitecer. Pessoas apressadas. Suadas. Rostos cansados e olhares errantes.

Entorpecida pelo calor, imaginava como ideal de prazer supremo a sensação de um banho refrescante ao chegar em casa. Dormir e, quiçá, sonhar. Sigo em direção à parada de ônibus mas não sem antes dar uma passada na biblioteca do meio do caminho. Velha conhecida. Onde sempre encontro algum “dos bons” que ninguém quis levar consigo. Subo as escadas.

Ao passar pela porta alta e suntuosa, vejo apenas brancos, bonitos e bons, sentados em cadeiras de espaldar alto e debruçados sobre antigas mesas de madeira de lei, dispostas nas laterais do balcão de entrada. Todos compenetrados na leitura dos clássicos. Grandes manuais que discutem o BGB e suas influências na teoria geral do direito civil da colônia. Ar condicionado. Clima tépido. Alguns estrangeiros e muito silêncio. Um ambiente austero, condizente com os sagrados que forma, e que evoca certa tensão. Parece que, ali, também se julga.

Livros do século XX pra lá, livros deste século pra cá. Como normalmente acontece, encontro um profano empoeirado em uma das prateleiras semi-vazias. Ninguém os dá muita importância. Pego o livro e me dirijo ao balcão de retirada. Contudo, ao passar pelo corredor lateral, entre as mesas, vejo uma ilustre freqüentadora do local. Mas, assim como eu, uma profana. Acomodada em uma das poltronas laterais, dormia. Quiçá sonhava. Sem qualquer constrangimento ou pudor ante os sagrados que seguem e produzem dogmas. O corpo relaxado, esparramado sobre o espaço da antiga poltrona estofada de pés entalhados em madeira nobre.

Ao reconhecê-la, meu corpo relaxa. Olho para ela. Olho no seu em torno. Ela estava confortavelmente à vontade no espaço. Talvez mais do que eu, quando entrei. Por outro lado, ninguém se incomodava com sua presença ali. Ao contrário, houve quem passasse por ela e lhe lançasse um olhar respeitoso, quase reverencial. Não lembro ao certo, mas talvez sorri diante da cena. De súbito, fui tomada por uma sensação de alívio. Por perceber que sempre há brechas para a profanação. Por contágio. Por uso. Em ato.

Frente a visão de uma gata de rua que, livre e sem dono, submete-se apenas às suas próprias leis e dorme na poltrona da biblioteca como se em qualquer outro lugar estivesse. Para além e aquém das leis, dos sagrados, dos dogmas e dos rituais judiciários.

Obviamente fui até ela e a acariciei antes de sair. Talvez silenciosamente lhe agradecia, pelo prazer que me proporcionara ao vê-la ali, lasciva e afetuosa, e pelas três lições que dara. Que todos os espaços sagrados estão à espera de profanação. Que alteridade é construção permanente, constante contínuo. E que a Universidade Federal em Gotham, como nenhuma outra, tem um quê de contracultural que incita à subversão. Em que pese ser instituição.


*título alusivo à obra "Em torno a diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. RJ: Lumen Juris, 2008" de Ricardo Timm de Souza.

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violência simbólica...

Garcia Marquez (2003: 53) aduz que "a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las". Por essa razão, e salvo entendimento diverso, entende-se que dissertar é preciso em quaisquer contextos historicamente situados, eis que constitui-se como produto cultural específico da disputa pela autoridade legítima em relações assimétricas de poder no campo científico.




Figura 1. Banheiro de mestranda (des)construindo-se dissertatisticamente.
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almoço no hotel

gotham city. quinta-feira chuvosa. julho de 20**.

[telefone toca]
- e aí, como tu tá?
- beleza. de ressaca, ainda ligada, mas nada de novo...
- porra, não tô conseguindo dormir. já tomei um banho e o resto do vinho, fumei um beck e nada. tô fritando na cama desde a hora que tu saiu. que bagulho fudido aquele de ontem, hein. onde tu pegou aquele pó, mulher?
- [risos] pergunta errada não merece resposta.
- olha só, preciso trepar. talvez me ajude a dormir...
- sério?
- sério. agora.
- olha, só vou sair daqui a uma hora, no intervalo do almoço. posso ir de lotação pra ganhar tempo. que tu acha?
- porra! e vou ter que esperar até a uma hora sem dormir? são dez da manhã! como eu vou trabalhar?
- bom, se tu não quer esperar até a uma vem pra cá e me espera no hotelzinho ali da marechal. invento um papo qualquer aqui e dô um pulo ali pra te encontrar.
- tu acha que consegue ir?
- tu acha que aguenta esperar?
- beleza. levo algo pra comer.
- beleza. leva um vinho também.
- mas não tem mais. bebi o resto que tinha de ontem...
- porra, passa no zaffari antes e pega um. ou leva um beck. e uns pão-de-queijo também. sei lá. leva alguma coisa.
- tá. vou de lotação pra chegar mais rápido.
- falou. bjo

[20 minutos depois, o telefone toca]
- e aí?
- tranquilo. já chegou?
- tô aqui embaixo. desce aí.
[quarto fuleiro em hotel barato. cheiro de umidade e mofo]
- mas que espelunca hein? isso aqui tá foda...
- fica fria, mulher. trouxe o vinho, a ponta que tava fumando e um lençol limpo.
- beleza.

[40minutos depois. suor, bochechas vermelhas, cheiro de mofo e látex no ar]
- que tu disse pra ela? [passa a ponta]
- que tinham me ligado do laboratório e tinha dado problema no exame. que eu tinha que voltar lá pra refazer.
- tu é foda. [pega a garrafa]
- já saquei qual é. ela é hipocondríaca. agora eu chego lá com estas bochas é capaz dela achar que eu chorei, que tô preocupada e me mandar pra casa.
- aí tu vai lá pra casa dormir comigo. [sorriso de satisfação]
- bem capaz! vou pra casa tomar um banho, trocar de roupa. e tu, vê se dorme. hoje é a festa do beto e parece que o lance vai ser violento. a gente tem que tá legal. [passa a ponta]
- porra, é verdade! tinha me esquecido disso. vou pra casa, durmo, depois vou pro trampo. quando sair te ligo. [passa a garrafa]
- beleza. saio da aula às onze e vou ficar pronta te esperando. cadê minha calcinha?
- sei lá. vê se não tá aí no meio do lençol.
- putz... azar! tenho que voltar logo. foda-se a calcinha. [passa a garrafa]
- espera aí que vou te levar até a portaria. [apaga a ponta]

[alguns minutos depois, passos largos, mãos dadas e beijo de despedida na esquina da salgado filho]
- vai lá guria. a gente se vê de noite.
- ok. te cuida. qualquer coisa, me liga.

[10 minutos depois, torpedo no celular]
- achei tua calcinha no bolso da minha jaqueta. perdeu morena! [sorrisinho discreto]
- tarado filho da puta! [sussurro]
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Epitáfio




cabeça vazia.
nariz quente.
maldita alergia.
o tempo passando.
aumenta a agonia.
orientador esperando.
dissertação que não vem.
mas, pelo menos...
epitáfio tem!
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I
beijo trêmulo. sôfrego. impulso derradeiro do segundo que perdido se assemelha à morte. dor lancinante do desejo atendido. do desespero da idéia constante. da suspensão do tempo. da cegueira do espaço. do apego dramático ao instante.

II
traz contigo a força que me inebria e corrói. que me questiona o quanto sou eu longe de ti. o quanto sou incapaz de ter a mim para te resistir numa tarde chuvosa e fria. aceito teus subterfúgios. sofro. crio táticas. me utilizo da completude para espargir sutilezas.

III
grandes olhos ridentes num silêncio verborrágico. um nariz afilado e um sorriso pueril. algumas piscadelas que ousam ultrapassar os limites do não-dito numa comunicação constante. um comentário engraçado para aliviar o peso da insuportabilidade do desejo na presença. entre intervalos e cafés um diálogo ocorre. mas nada se diz. tudo permanece nas entrelinhas. segue no plano das idéias. dentro de duas cabeças um relacionamento acontece.



(para ouvir...)
Vitor Ramil
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Buenos Aires, 4 de octubre de 2009. 4h56min


“Mi Buenos Aires querido
cuando yo te vuelva a ver
no habrá más penas ni olvido”
Gardel
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Palacio Barolo y el Faro - Av. de mayo 1370 - Buenos Aires



Show de re-abertura do farol do “Palácio Barolo”, dia 03/10/2009. Uma das festividades que antecede a comemoração do Bicentenário da Argentina (em 25/05/2010).

Houve uma mostra cinemática na fachada do Palácio, alegórica à Divina Comédia de Dante Alighieri e suas 3 etapas (Inferno, Purgatório e Paraíso), obra que inspirou a construção do Palácio, na década de 1920, pelo industrial Luis Barolo e o arquiteto Mario Palanti. As imagens de passagens da obra eram projetadas em jogos de luz e sombras, com movimentos e cores.

O espetáculo ocorreu a céu aberto, em frente ao prédio, local em que a quadra foi fechada e onde um aparato de luzes, câmeras em gruas e telões foi montado. No meio da tarde já era possível ver a longa fila de pessoas esperando a abertura do espaço onde tinham as cadeiras que rodeavam o piano.

Neste cenário, às 21h, o pianista Horácio Lavandera, tocou sonatas de Beethoven (Patetica, Moonlight e Aurora) em alusão à Divina Comédia. No texto de abertura, “...dois homens com um sonho... um edifício com um propósito... proteger o espírito da Divina Comédia...”, a referência aos idealizadores do Palácio.

Ainda que eu escreva um tratado, não bastaria, pois apenas uma palavra resume o que vi: indescritível.
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(a)versões...

Paulo e Antônio não se viam desde os tempos da formatura. E foi por acaso que se reencontraram. Ao entrar num café, para beber alguma coisa e matar tempo enquanto a esposa fazia compras na loja da esquina, Paulo viu um homem sentado junto ao balcão, cujo rosto lhe era familiar. Demorou um pouco para lembrar-se de onde o conhecia, mas viu tratar-se de seu velho companheiro de aulas práticas na faculdade de Medicina.
- Com licença? Antônio da turma de 82 da FAMED?
- Paulo! E aí, meu chapa, que prazer em te rever! Quanto tempo, não?
- Nossa! Muito tempo mesmo. Mas também, nos formamos e pegamos rumos opostos... Como está, cara? Consultório aqui por perto?
- Não. Abandonei a medicina já tem tempo. Se tu quer saber, peguemos uma mesa que te conto como foi.
- Sim, claro! Me conta esta história.
- Bom, quando se ingressa no mercado profissional, passa-se por poucas e boas. Às vezes nem tão poucas e nem tão boas. Tu bem sabe. Mas o que teria a conotação de desastre, quando se é jovem, adquire ares de aventura. E comigo não foi diferente. Quando comecei na clínica médica, não imaginava nem a metade dos incidentes que presenciei, nem o que aconteceria no decorrer da profissão. Ainda mais na pacata cidade do interior de Minas onde fui parar quando comecei. E foi lá que aconteceu o que vou contar agora. Se tu gosta de ouvir “causos”, pois bem! Prepare-se para aumentar o seu arquivo.
Fazia poucos dias que havia chegado à Santa Lourdes, cidade pequena e humilde, no interior de Minas Gerais, quando fui informado da existência de um médico que possuía uma clínica ao pé de um morro. Tal clínica tinha a fama de ser referência na região no tratamento de uma série de moléstias, oferecendo aos seus frequentadores uma diversidade de programas de descanso e restabelecimento da saúde e do equilíbrio. Era procurada por muitas pessoas, principalmente por aqueles que tinham altas somas em dinheiro para custear os tratamentos, que não eram baratos.
Segundo diziam alguns, o local era o paraíso na Terra em matéria de tratamentos para os nervos ou desordens psíquicas de todo gênero. Muitos figurões da alta sociedade hospedavam-se por lá, a fim de revigorarem-se ou tratarem-se, sem prazo para deixá-la. Era algo como um Spa, ou qualquer outro local desses, que é tão bom que você nem vê o tempo passar.
A maioria dos moradores da cidade, no entanto, padecia dos mais simples males sem quaisquer orientações ou prescrições médicas. E era para atendê-los que eu estava lá. Mas confesso que quando cheguei, recém saído da faculdade, não tinha a mínima noção do que significava ser médico, principalmente em um local como aquele. Sabe como é, a gente sempre idealiza a profissão, o mundo, enfim... aquele sonho do especialista, no consultório, atendendo com hora marcada e tal.
- Uhum... sei, sei! Comigo aconteceu exatamente isso também...
- Mas na realidade o papo é outro. Consultório de médico no interior tem tudo que uma família precisa. E tem de ser assim. Não tem hora, nem lugar. Para tudo tem que haver um remédio, uma solução, um aconselhamento ou indicação. Talvez por isso tenha ido parar onde parei e chegado aqui.
- Mas o que aconteceu pra tu mudares de ideia?
- O que ocorreu foi que a minha fama de bom médico foi se disseminando na cidade. Além dos pacientes habituais, outros vinham me procurar. Alguns deles começaram a relatar efeitos colaterais indesejados, decorrentes do tratamento na tal clínica particular. Sabes o que eu penso, não é, a respeito do uso de certas terapias alternativas, principalmente aquelas que usam plantas e fitoterápicos em tratamentos de saúde. Acho altamente duvidosa a medicina preventiva. Acho que ela pode, muitas vezes, acelerar doenças. E foi isso que começou a ocorrer entre os pacientes da clínica.
Intrigado com aquela situação, entrei em contato com um conhecido meu, Lúcio, policial em Goiânia, com quem conversei sobre assunto. Ele me aconselhou a respeito e passei a investigar o médico e os tratamentos desenvolvidos na clínica. Me envolvi totalmente com aquilo. Fiquei tão absorvido pelas buscas que passei a deixar o consultório em segundo plano. No entanto, os pacientes continuavam chegando e relatando os mais terríveis sintomas: úlceras, enjoos, vertigens, alucinações e desmaios. Ninguém sabia quais as substâncias que a clínica administrava, e eu tentava cessar as moléstias o mais rápido possível.
Quando finalmente descobri o que se passava, perdi totalmente a paixão pela medicina. O médico (e dono da clínica) era um farsante! Os remédios administrados eram prescritos sem qualquer conhecimento médico ou científico! Ele fazia os programas de tratamento de forma totalmente leviana, a partir de manuais médicos ultrapassados.
E eu mesmo conduzi as investigações, colhi as provas e auxiliei na prisão do canalha! Quando os policiais chegaram, eu já o tinha amarrado em meu consultório. Fiz diversas perguntas, o interroguei e ameacei matá-lo, tamanha a raiva que eu sentia. Mas ele permanecia com o mesmo semblante, tranquilo e impassível.
- “Não queria fazer mal a ninguém. Eu queria apenas ganhar algum dinheiro e viver em um lugar sossegado, mas foi de repente que me dei conta de que a profissão tinha ficado séria”, diz ele sem falsa modéstia. Em vez de confortar, a constatação aumentou sua inquietação habitual. Aí era tarde demais para voltar atrás...” dizia Antônio debochando do falsário.
- E o que aconteceu? Perguntou Paulo.
- Ele foi acusado por curandeirismo. Ficou preso por uns dias e logo depois foi liberado e desapareceu.
- E quanto a você?
- Me apaixonei pela atividade investigativa, larguei a medicina e me tornei detetive. Agora, por exemplo, estou esperando um cliente para pegar algumas informações.
- .... Estou surpreso Antônio! Eras tão dedicado ao curso, tão seguro da profissão. Como as coisas mudam, não?
O celular de Paulo toca. - Um minuto, sim?
Antônio acena com a cabeça e olha o relógio.
- Sim, querida. Já estou indo. Encontrei um antigo colega de faculdade, o Antônio, e perdi a hora. Me espere que em um minuto estou aí, ok?
- Bom, amigo, preciso ir. Mas, que bom te reencontrar! Precisamos marcar um jantar, para conversarmos mais, nos revermos.
- Oh, sim, claro! Farei muito gosto.
Eles se levantam, se abraçam e Paulo sai. Antônio pega uma revista que estava sobre a mesa ao lado e senta-se novamente.
O dono do café lança os olhos sobre Antônio e faz um sinal com a cabeça para o garçom.
- Já perdi as contas de quantas vezes vi ele contando esta história.
- Ele vem sempre aqui? Pergunta o garçom.
- Sim, sim. O Dr. Antônio Machadinho. Matou a mulher, o filho e o cachorro com um machado, diante do enfermeiro amarrado e amordaçado. Dizem que criou esta história toda de clínica e pacientes que ele tratava depois que saiu do Manicômio Judiciário...

N. do T.
trechos em itálico foram os gatilhos para a criação do texto.
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no momento, só tenho fragmentos de desconfortos causados por constrangimentos acadêmicos que, em que pese a rusticidade, se pretendem literários...
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Corre como Homem?!?



A forma como ocorre a naturalização de (pré)conceitos e, por conseqüência, de práticas é, no mínimo, interessante.
Algumas notícias deram conta de que a atleta sul-africana Caster Semenya, e cuja medalha de ouro por seu desempenho na prova de 800metros no atletismo fora posta em dúvida, teria de passar por testes para definir seu gênero. Ouquei, pensei: A velha história do “baixa as calças e mostra os documentos” tem ganhado sofisticação.
De imediato, lembrei da minha primeira experiência de surpresa com este tipo de coisa. O caso, contudo, era paroquial. Praticamente familiar. E não me rendeu medalha alguma. Mas serve para pensar a respeito. A ver.
Modéstia totalmente à parte, sempre dirigi muito bem (como a teoria da rotulação explica e a profecia que se auto-realiza corrobora) e atribuo este fato à minha paixão por motores (sim, o capitalismo também nos legou coisas boas e, neste momento, Henry Ford sorri no inferno...) combinada à minha precoce iniciação e reiterada prática de condução de veículos.
Mas não foi sem o espanto de quem não entende a piada que recebi, certa feita, o comentário de meu velho pai ao vizinho, depois de me assistir (de braços cruzados e sorrisinho sarcástico) sair de uma “sinuca de bico”, composta por dois carros (mal) estacionados próximos à nossa garagem. Sim, eu estava “esnucada” e na direção de um clássico Ford com direção mecânica. Um convite ao escárnio alheio...
Resolvido o impasse dos veículos, com o estacionamento bem sucedido, ouço, ao sair do carro, a máxima: “Esta guria dirige que nem homem!” Sim. O velho estava orgulhoso e queria demonstrar sua satisfação. E o fez da pior maneira, machista e preconceituosa. Claro está que, naquele momento, não tive grandes dúvidas quanto a minha posição neste mundo dual dos (pré)conceitos. Era óbvio para mim. Eu era uma mulher (e com todas as implicações que disso advém).
Hoje, porém, já não faço esta afirmação de maneira tão enfática quanto a fiz na época, pois os novos acontecimentos me deixaram em dúvida. Afinal, se o gênero masculino x feminino é definido por um exame hormonal, eu posso (e quaisquer um de nós, senão todos!) descobrirmo-nos de outro gênero! Se o critério é esse, é possível, até por que nunca fiz dito exame, que eu seja HOMEM e não saiba! (alguém aí já o fez e carrega na carteira para provar? Tipo, “ó, minha taxa de testosterona é 0,853% em cada ml de sangue, isso quer dizer que sou homem”).
Superado este momento de crise de identidade sexual que tive, o que resta é pensarmos o quanto o que fazemos diz do que fazemos. E o que somos. O debate “coisas de homem e coisas de mulher” já povoa as páginas da Revista Nova a um bom tempo, os antropólogos discutem os limites entre natureza e cultura e as feministas esbravejam e se descabelam acerca da dominação masculina.
Não obstante, as práticas discriminatórias seguem acontecendo, legitimadas por novas técnicas de saber, poder e ciência, utilizadas amplamente sem quaisquer (ou maiores) questionamentos. E permeiam diversos discursos. A atleta é mulher, negra e sul-africana. Ela correu muito. Tanto que conseguiu a medalha de ouro. Alguma coisa está errada, pensaram alguns... Outros, no entanto, agiram. Afinal, precisamos manter atualizado nosso banco de dados de categorias de coisas.
Sim, feitos os exames, constataram que Caster possui três vezes mais testosterona que uma “atleta comum” (leia-se normal). Como os médicos aFIRMAram que tais níveis podem ocorrer por fatores naturais, ela foi posta sob vigilância por determinado tempo, realizando novas medições, a fim de verificarem se as taxas se mantêm. (Quiçá algum remediozinho para “estabilizar” este turbilhão hormonal pelo qual passa a jovem de 18 anos?)
Muito distante dali (leia-se Berlim, ALEMANHA), sua cidade natal (Johannesburgo, ÁFRICA DO SUL) a recepcionara entre festejos e protestos. Alguns reclamando a discriminação por ela sofrida, racista e sexista, outros reconhecendo sua façanha, atingida graças ao seu esforço e determinação. A família, no entanto, afirma: ela é 100% mulher. Dadas as circunstâncias, irei ao médico amanhã. Eu preciso saber o que eu sou...


Pensando sobre o assunto, começo a ouvir os Titãs gritando na minha orelha: “não é que eu vou fazer igual, eu vou fazer pior” (antes de berrar mais algumas vezes: “nem sempre se pode ser Deus! Nem sempre se pode ser Deus!”)... Também tá ouvindo?
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vem sempre aqui?

Na expectativa de que quaisquer das minhas experiências cotidianas sejam lidas e utilizadas como roteiro para um filme - com a minha devida autorização, por óbvio! -, eis que surrealistas demais para serem contadas em rodas de bar, inicio aqui minhas narrativas. Ou fragmentos de.
Para aquele(a) gracioso(a) que possa vir com a célebre frase: "Até tu, Brutus!", adianto: não perca tempo ou teste meu estado de espírito. Leia o subtítulo deste.


Confira seu troco no balcão. Não aceitamos reclamações posteriores.
Obrigada pela preferência. Volte sempre!

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