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(a)versões...

Paulo e Antônio não se viam desde os tempos da formatura. E foi por acaso que se reencontraram. Ao entrar num café, para beber alguma coisa e matar tempo enquanto a esposa fazia compras na loja da esquina, Paulo viu um homem sentado junto ao balcão, cujo rosto lhe era familiar. Demorou um pouco para lembrar-se de onde o conhecia, mas viu tratar-se de seu velho companheiro de aulas práticas na faculdade de Medicina.
- Com licença? Antônio da turma de 82 da FAMED?
- Paulo! E aí, meu chapa, que prazer em te rever! Quanto tempo, não?
- Nossa! Muito tempo mesmo. Mas também, nos formamos e pegamos rumos opostos... Como está, cara? Consultório aqui por perto?
- Não. Abandonei a medicina já tem tempo. Se tu quer saber, peguemos uma mesa que te conto como foi.
- Sim, claro! Me conta esta história.
- Bom, quando se ingressa no mercado profissional, passa-se por poucas e boas. Às vezes nem tão poucas e nem tão boas. Tu bem sabe. Mas o que teria a conotação de desastre, quando se é jovem, adquire ares de aventura. E comigo não foi diferente. Quando comecei na clínica médica, não imaginava nem a metade dos incidentes que presenciei, nem o que aconteceria no decorrer da profissão. Ainda mais na pacata cidade do interior de Minas onde fui parar quando comecei. E foi lá que aconteceu o que vou contar agora. Se tu gosta de ouvir “causos”, pois bem! Prepare-se para aumentar o seu arquivo.
Fazia poucos dias que havia chegado à Santa Lourdes, cidade pequena e humilde, no interior de Minas Gerais, quando fui informado da existência de um médico que possuía uma clínica ao pé de um morro. Tal clínica tinha a fama de ser referência na região no tratamento de uma série de moléstias, oferecendo aos seus frequentadores uma diversidade de programas de descanso e restabelecimento da saúde e do equilíbrio. Era procurada por muitas pessoas, principalmente por aqueles que tinham altas somas em dinheiro para custear os tratamentos, que não eram baratos.
Segundo diziam alguns, o local era o paraíso na Terra em matéria de tratamentos para os nervos ou desordens psíquicas de todo gênero. Muitos figurões da alta sociedade hospedavam-se por lá, a fim de revigorarem-se ou tratarem-se, sem prazo para deixá-la. Era algo como um Spa, ou qualquer outro local desses, que é tão bom que você nem vê o tempo passar.
A maioria dos moradores da cidade, no entanto, padecia dos mais simples males sem quaisquer orientações ou prescrições médicas. E era para atendê-los que eu estava lá. Mas confesso que quando cheguei, recém saído da faculdade, não tinha a mínima noção do que significava ser médico, principalmente em um local como aquele. Sabe como é, a gente sempre idealiza a profissão, o mundo, enfim... aquele sonho do especialista, no consultório, atendendo com hora marcada e tal.
- Uhum... sei, sei! Comigo aconteceu exatamente isso também...
- Mas na realidade o papo é outro. Consultório de médico no interior tem tudo que uma família precisa. E tem de ser assim. Não tem hora, nem lugar. Para tudo tem que haver um remédio, uma solução, um aconselhamento ou indicação. Talvez por isso tenha ido parar onde parei e chegado aqui.
- Mas o que aconteceu pra tu mudares de ideia?
- O que ocorreu foi que a minha fama de bom médico foi se disseminando na cidade. Além dos pacientes habituais, outros vinham me procurar. Alguns deles começaram a relatar efeitos colaterais indesejados, decorrentes do tratamento na tal clínica particular. Sabes o que eu penso, não é, a respeito do uso de certas terapias alternativas, principalmente aquelas que usam plantas e fitoterápicos em tratamentos de saúde. Acho altamente duvidosa a medicina preventiva. Acho que ela pode, muitas vezes, acelerar doenças. E foi isso que começou a ocorrer entre os pacientes da clínica.
Intrigado com aquela situação, entrei em contato com um conhecido meu, Lúcio, policial em Goiânia, com quem conversei sobre assunto. Ele me aconselhou a respeito e passei a investigar o médico e os tratamentos desenvolvidos na clínica. Me envolvi totalmente com aquilo. Fiquei tão absorvido pelas buscas que passei a deixar o consultório em segundo plano. No entanto, os pacientes continuavam chegando e relatando os mais terríveis sintomas: úlceras, enjoos, vertigens, alucinações e desmaios. Ninguém sabia quais as substâncias que a clínica administrava, e eu tentava cessar as moléstias o mais rápido possível.
Quando finalmente descobri o que se passava, perdi totalmente a paixão pela medicina. O médico (e dono da clínica) era um farsante! Os remédios administrados eram prescritos sem qualquer conhecimento médico ou científico! Ele fazia os programas de tratamento de forma totalmente leviana, a partir de manuais médicos ultrapassados.
E eu mesmo conduzi as investigações, colhi as provas e auxiliei na prisão do canalha! Quando os policiais chegaram, eu já o tinha amarrado em meu consultório. Fiz diversas perguntas, o interroguei e ameacei matá-lo, tamanha a raiva que eu sentia. Mas ele permanecia com o mesmo semblante, tranquilo e impassível.
- “Não queria fazer mal a ninguém. Eu queria apenas ganhar algum dinheiro e viver em um lugar sossegado, mas foi de repente que me dei conta de que a profissão tinha ficado séria”, diz ele sem falsa modéstia. Em vez de confortar, a constatação aumentou sua inquietação habitual. Aí era tarde demais para voltar atrás...” dizia Antônio debochando do falsário.
- E o que aconteceu? Perguntou Paulo.
- Ele foi acusado por curandeirismo. Ficou preso por uns dias e logo depois foi liberado e desapareceu.
- E quanto a você?
- Me apaixonei pela atividade investigativa, larguei a medicina e me tornei detetive. Agora, por exemplo, estou esperando um cliente para pegar algumas informações.
- .... Estou surpreso Antônio! Eras tão dedicado ao curso, tão seguro da profissão. Como as coisas mudam, não?
O celular de Paulo toca. - Um minuto, sim?
Antônio acena com a cabeça e olha o relógio.
- Sim, querida. Já estou indo. Encontrei um antigo colega de faculdade, o Antônio, e perdi a hora. Me espere que em um minuto estou aí, ok?
- Bom, amigo, preciso ir. Mas, que bom te reencontrar! Precisamos marcar um jantar, para conversarmos mais, nos revermos.
- Oh, sim, claro! Farei muito gosto.
Eles se levantam, se abraçam e Paulo sai. Antônio pega uma revista que estava sobre a mesa ao lado e senta-se novamente.
O dono do café lança os olhos sobre Antônio e faz um sinal com a cabeça para o garçom.
- Já perdi as contas de quantas vezes vi ele contando esta história.
- Ele vem sempre aqui? Pergunta o garçom.
- Sim, sim. O Dr. Antônio Machadinho. Matou a mulher, o filho e o cachorro com um machado, diante do enfermeiro amarrado e amordaçado. Dizem que criou esta história toda de clínica e pacientes que ele tratava depois que saiu do Manicômio Judiciário...

N. do T.
trechos em itálico foram os gatilhos para a criação do texto.
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no momento, só tenho fragmentos de desconfortos causados por constrangimentos acadêmicos que, em que pese a rusticidade, se pretendem literários...
 
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