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Ao menino fazedor de poemas
Diga, por favor,
Que faça poemas breves
Lívidos e translúcidos.
Que os reserve para os dias cinza
De chuvas esparsas e clima abafado.
Onde possa inscrever
As suaves sensações causadas
Pelo breve toque dos fios dourados
Dos cabelos de sua amada ridente e doce.
Que nos dias de sol tépido e ar fresco
Possa caminhar entre os passantes
A observar as copas das árvores desenhadas
Nos ladrilhos das calçadas que levam a sua casa
Imaginando versos e ensaiando falas
Das mais singelas às mais belas palavras
Delicadamente eleitas
Para recitar a ela
No derradeiro momento do encontro.
Que não lhe ocorra, porém
Sob efeito de tão sublime estado de torpor
Conceber nada diferente disso
Ainda que na condição de possibilidade.
Que ele possa manter ao longo do tempo
O sentimento menino
Dentro do coração homem
Sem pensar que o amor é breve
O beijo efêmero
E o instante eterno.
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sentir por soleá y vivir por flamenco




Entre saudades e afazeres eu levo a vida madrileña (sim, começo a sentir falta de algumas pessoas e/ou coisas). Consegui ter problema de colisão de horários na faculdade, razão porque estou buscando outra disciplina para cumprir minha obrigação de fazer os 24 créditos mínimos. Já que o professor de antropologia aplicada resolveu mudar o horário da aula informalmente, eu não tenho nada a fazer senão lamentar. Colide com a minha disciplina de antropologia urbana que promete bons textos e reflexões em torno da temática. Escola de Chicago, diversidade urbana, juventude, migrações, formação de grupos urbanos e eu não vou me estressar fazendo cadeira pra cumprir tabela. Saí em busca de outros cursos. Literalmente, estudo propostas.

(Es)Carla já tinha me tentado com uma cadeira da letras. Literatura Hispanoamericana e só prazer literário: Borges, Cortázar, Garcia Marques. Mas terei que sacrificar minhas sextas-feiras de folga da UAM. O professor, contudo, não goza de boa fama. Genioso e exigente. Em se tratando de área na qual sou duplamente forasteira, fiquei apreensiva. Mas fui conferir na sexta passada (minha sanha camicase sempre presente). Pra amaciar o lombo, comecei a ler os contos de Borges, indicados pelo cara e emprestados pela chica.

Saí meio sonolenta para fazer nosso esquema metrô-renfe-campus. Desci em Nuevos Ministérios para pegar o renfe junto com a multidão que vem e vai diariamente. Hoje, excepcionalmente, o cara do violino se sobressaiu na minha percepção matutina pela música que executava. Imediatamente, ela me remete ao Teatro Renascença, ao cheiro incômodo da máquina de fazer fumaça ao pano preto das pernas da coxia. Laís, Kalu, a bata de cola azul.

Me soou um aviso, um puxão de orelha, um chamado da consciência. Não adianta, eu (não) estou aqui e lá. Algumas coisas unem e separam esse dois mundos. E o flamenco é uma delas. “Hoje, depois da aula, eu não volto pra casa. Vou à escola de Flamenco.” Decidido e combinado comigo mesma. Peguei o trem de volta e desci na estação Sol (correspondencia con las líneas 1, 2 y 3 de metro y cercanías). Tomei a linha 2 até Antón Martín.

Bueno, eu sabia o endereço e o número, mas isso é o que menos importa, pois há que se dominar a arte ninja da lógica da numeração das ruas de Madrid. Aliás, quem souber, por favor, me explica, pois já tem 1 mês que estou aqui e ainda não descobri como a sequência 1, 2, 3, 18, 23, 35, 4, 7, 68 pode fazer sentido (sem nada mais no meio). Pois bem, dessa vez não foi diferente. Repassei a quadra umas três vezes, indo e vindo, checando a numeração. Tinham quase todos os números (fora da ordem) exceto (claro!) o que eu buscava. Já me acostumei com a extraordinariedade do banal na minha vida.
Contudo, enquanto eu procurava, olhos, ouvidos, nariz atentos. Um bairro central de Madrid, com ruas estreitas e grande circulação de carros e pessoas, sempre tem muito a oferecer em termos de observação. Espanhóis, turistas, migrantes, trabalhadores e ociosos. Um mercado com bancas variadas, recebendo peixes e outros frutos do mar em gamelas brancas, cercados de gelo. Na calçada, senhoras conversam e gesticulam efusivamente enquanto escolhem suas compras. Bares com balcões cheios de homens que fumam, bebem e conversam.
Cansada de ir e vir na mesma quadra, olhando pros lados, procurando no vazio como uma puta decadente, resolvi me certificar de que estava no lugar certo. Perguntei ao atendente da banca do peixe. Ele prontamente saiu detrás do balcão, enxugando as mãos no avental, e veio me passar as instruções. Sim, estava certa. O número que eu buscava É o mercado. A Escola fica no primeiro andar do mercado, para a minha surpresa em um primeiro momento. Na verdade, não me pareceu que o mercado fosse maior do que aquilo (e é). Sequer que no andar de cima houvesse uma escola de flamenco (e há). Subi as escadas e entrei no prédio. Lá dentro, uma infinidade de bancas, com cores e cheiros variados. Dei uma volta pelos corredores antes de subir o outro lance de escadas. Peixes, queijos, vinhos, carnes de caça e de porco, churros, frutas tropicais e secas, sementes. Uma diversidade de coisas que aguçam os sentidos.

Ao subir os primeiros degraus para o segundo lance já era possível ouvir o som das castanholas. Arrepio pelo corpo. Frio na barriga. A cada degrau, o som se aproximava. Ao final do segundo lance, uma porta. Diante dela, duas mulheres se alongam no corrimão, enquanto fumam e conversam rápido. Esguias e belas. Maquiadas e de coque. Colant, saia de ensaio, meia-calça e sapatos de baile.

Ao abrir a porta, senti o cheiro do café passado da Kalu na Lenita. Estou no lugar certo. Como na primeira vez em que estive na Plaza Mayor e fui arrebatada por um sentimento de presença ao ouvir o “Adágio”, executado no violino por um artista de rua, e ver diante de mim Laís e Alexandra dançando com todo o tesão e a leveza que lhe são peculiares. Espíritu Alumbra. Elas estão lá e aqui também. Fantasia é a vida...
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Aos indivíduos atribulados de atividades complexas e absorventes que vieram reclamar que estou "demorando muito" para fazer novas postagens no blog, eu juro que estou me esforçando para manter um assiduidade virtual. Calma, porra, si?
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Carnaval Roquenrrol


Visão do campus, da janela da minha sala de aula


Feriadinho de carnaval no Brasil. Aqui, ZERO grau e eu na aula. 10 da manhã e neva. Nada muito considerável mas já dá pra acumular uns floquinhos sobre o casaco. Professor atrasado e alunos sonolentos. Todo mundo bem devagar. Me sento no fundo da sala para observar melhor o meu entorno. Participação observante e pouco participante. Antropologia urbana. Conteúdo interessante e professora difícil. Dispara 2.375 palavras por minuto. Difícil de entender. Sobretudo quando eu recém acordei. Minha tecla SAP ainda está “...processando...”

E segue nevando. A grama e as árvores já estão brancas dos flocos que caem. E eu sigo para a próxima aula. Formações socioeconômicas? What the hell does it meaning, God? Que eu cai de páraquedas em uma aula de história dos sistemas econômicos. Sim, economia social desde o período pré-industrial (ou como diria um grande criminólogo que eu conheço: desde a Grécia Antiga? Não fode!), com uma professora que fala sem parar e aos berros. Definitivamente estou no lugar errado. Não volto certo. E segue nevando afú. Encarar a última aula da manhã, ir pra casa, almoçar e, quiçá, fazer uma “siesta” antes de ler alguma coisa e dar uma volta pela cidade.

Interessante observar, no entanto, que o ambiente acadêmico reflete de maneira relativamente precisa o que se observa no cotidiano madrilenho. Para ficar mais claro, uma observação rotineira. Se não todos, pelo menos 92,4% da população de Madrid fuma. 97,2% bebe. E 100% faz as duas coisas juntas e de maneira constante. É possível afirmar, sem muita margem de erro inclusive, que os espanhóis foram os únicos que entenderam e puseram em prática a máxima punkrockhardcore “live fast and die young”. Nos corredores da faculdade a visão é idílica, em termos de transgressão do ideal moderno de longevidade e corpos saudáveis. Além do visual, deveras ronquenrol (que será tema de um futuro post), a galera almoça degustando (várias) cervejas e fumando vários (na maioria das vezes cigarro). Ah, bons tempos de Bar do Antônio no campus central da UFRGS...

E para quem viveu o período em que se fumava nos corredores (cigarros, crianças!) do prédio 11 da PUCRS (diante da placa proibicionista), aquilo era brincadeira de criança. Aqui, a névoa branca toma conta dos corredores e de todas as salas. E é só passar de uma sala para outra para o cheiro de cigarro grudar em roupas, cabelos, folhas, enfim... !Qué lindo!
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Entre tigres...


Os chineses dominarão o mundo. E eu tenho muito medo disso. Por aqui, NÃO HÁ lugar onde eles não estejam presentes. Todos os mercadinhos que vendem quinquilharias mil são dos “chinos”. Algumas coisas vale a pena comprar, sobretudo quando a qualidade e/ou vida útil não estão em jogo. Os preços podem (eu disse podem) ser em conta para algumas coisas. Mas o mais divertido é estabelecer uma relação interétnica para efetuar a compra. Pois, se a gente sabe pouco de espanhol, a maioria deles sabe menos ainda. Aí, os “ruídos” de comunicação produzem situações que vão do bizarro ao hilário.


Bueno, desconsiderando o fato de que eles realmente dizem “aliba” quando querem dizer “arriba” e que eu também tenho de recorrer ao dicionário para saber como pedir uma niqueleira ou um adaptador de tomada (em tempo, é “monedero” e “enchufe”), é preciso expandir o rol de sinônimos, pois, na maioria das vezes, não se é compreendido de pronto. É preciso estar disposto a ir para além dos ordinários limites cotidianos do que se entende por se fazer entender. Entende?


Um exemplo que ocorreu comigo. Precisava de um protetor para o ralo do banho. Aquela tampinha de metal, cheia de furos que entre os espanhóis pode ser chamada de “sumidero”, entre os chinos pode ser chamada de qualquer coisa... eles simplesmente não entendem.


Assim, cheguei lá e tentei realizar a clássica busca visual entre os corredores estreitos e entulhados de artigos diversos, todos misturados, da pequena lojinha. Não encontrando, inicia-se o desafio: perguntar aos chineses se há o objeto buscado. Bom, foi o que eu fiz. Perguntei se tinham um “sumidero”. Pausa seguida de um já conhecido risinho oriental. Nada. “No compreendo”, ele diz. Aí, inicia uma segunda etapa: explicar, através de sinônimos e gestos, o que seria aquilo.


Para poner en la salida del agua del baño”, “donde sale el agua”. Um aceno afirmativo de cabeça, ele me leva a um outro corredor estreito e me apresenta um rodo. “No, no”, digo. “Donde el agua sale". "Objeto de metal" (fazendo gestos de repelir com os braços...). “Aahhhh, porque não disse antes”, ele deve ter pensado. Sacode a cabeça, me leva a um outro corredor e me entrega um pacote de soda cáustica. “No, no, es de metal, para PONER donde SALE el agua”, digo (“gesticulando” e fazendo um círculo com o polegar e o indicador esquerdos, introduzindo o indicador direito. Algo bastante peculiar, aliás, diante daquela pessoa de olhinhos pequenos que me olhava intrigada).


Ele sorri, sacode afirmativamente a cabeça e me leva até o fundo da loja. Pega, em uma das prateleiras, o ralinho de metal “Made in China”. 0,75 de euro. Missão cumprida.


Assim ocorreu com o porta-guardanapos (que primeiro veio uma lixeira) e com uma niqueleira (que me vi com um cofre de porquinho nos braços). Para comerciar com os chinos é preciso tempo, paciência, disposição para se confrontar com o inesperado e, sobretudo, criatividade.


Como (Es)Carla, que contou com a ajuda solidária de um espanhol que estava na loja para explicar ao chinês que queria um aparelho de telefone mais barato que aquele, não se pode desistir no primeiro fracasso. “Ellos no comprenden nada”, disse o espanhol, dando de ombros. No entanto, a gente insiste. E sempre achamos o que buscamos.
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volta às aulas...

Primeiro dia de aula na UAM. Levantei relativamente cedo para o horário espanhol, com um trecho de uma música se repetindo na minha cabeça: inferno. Dor de cotovelo afú. Deprê de última. Totalmente em descompasso com a noite tranqüila e a manhã sonolenta em que estava. Enfim, não sei de onde tirei essa merda.

Fiz aquele café estilo “bem pegado” (café-cereal-pão-suco-frutinha) e me fui com Xu para a viagem que é chegar até Cantoblanco, o local que sempre está com 3 ou 4 graus menos que Madrid... um salve para o abono transportes, área B1. Pegar metrô, trem, ônibus e tapetes voadores com um só bilhete é a salvação dos meus euros.

Corridinha pelas escadas rolantes do metrô. Que, aliás, seguem a mão do trânsito portoalegrense: a galera que tem pressa e/ou precisa correr anda pela esquerda. Os mais sossegados ficam na direita. Nada de empacar a escada rolante na esquerda, sob pena de levar mijada ao pé da orelha, no melhor estilo madrilenho reclamão. E isso se aprende rápido.

Menos três andares (para baixo) até a linha 6. Ante-sala do capeta. Tomamos o Renfe que, hoje, estava em velocidade cruzeiro. Claro, primeiro dia de aula e estou queimada no horário. NATURAL o Renfe resolver ir devagar. Só hoje. No dia que não sei onde É a minha sala no labirinto que são os módulos da faculdade de filosofia e letras.

Procurei a sala feito um cão que se perde do dono entre uma multidão de desconhecidos que falam diferentes idiomas. Quando, finalmente, encontrei a minha suposta sala de aula, constato que, ao invés de antropologia urbana, rola uma aula de introdução à língua inglesa. No mínimo curioso, penso. Duas salas do mesmo prédio com o mesmo número? Dei mais uma caminhada. Nada. Quando estava à beira de desistir, indo tomar uma coca no bar, dou de cara com o mural de horários. Por ele, fui informada que os horários das aulas mudaram e, inclusive, os módulos onde terei as aulas são outros... só não atualizaram o site. Nostalgia da UFRGS de novo. Das 10h para as 12h da manhã. Copiei todos os horários e salas.
Perguntei as horas para um casal de ingleses que conversavam efusivamente ao meu lado.
Tenho tempo. Enquanto isso, escrevo.
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Como enlouquecer um espanhol em três etapas:

1. Ligue para a companhia telefônica e ameace cancelar o serviço contratado;
2. Duvide da veracidade da promoção anunciada inclusive na TV;
3. Pergunte (mas insista!) onde consta escrito no contrato tais facilidades.
“No se ponga nerviosa señora” (...)
“Pero NO HAY permanencia señora”.

Para quem reclama das companhias telefônicas no Brasil, preciso deixar uma palavra de (des)conforto. Elas fazem um complô mundial contra a sanidade mental humana. Depois de quase duas semanas de solicitação, ligações e cobranças via call center (aqui, ligações PAGAS), com (Es)Carla aprimorando sua desenvoltura no espanhol (agora com o implemento de “palavrotes”), parece que temos telefone. O cara da companhia telefônica veio aqui em casa no início da noite para instalar telefone e internet. Obviamente, não trouxe consigo o roteador que chegará em (até) 48 horas.

Teve de procurar a tomada de entrada (ou saída). Para isso, não se fez de rogado. Aliás, se sentia em casa. Se deitou sobre a cama da Helo para testar uma delas (das tomadas, penso eu). Pulou a janela da cozinha, que dá para um patiozinho interno e, para completar voltou para dentro de casa fumando (?!?).

Isso aí. Andou por toda a casa e fez todo o procedimento fumando. Sequer lhe ocorreu a idéia de perguntar se isso seria problema para nós. Com uma desenvoltura de quem é íntimo dos anfitriões “mandava” buscar os equipamentos dele (que estavam no quarto) ou os papéis que deixara sobre a cama (da Helo). Fez o serviço, virou as costas e foi embora. Agora temos telefone residencial e esperamos um roteador.
 
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