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Estrada para Múrcia...

Trilha Sonora: Concha Buika
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O vulcão. O menino. A nuvem.


Vulcão Eyjafjallajokull, Islândia


Havia um certo vulcão em certa terra do gelo que causou muito dano. Por ser muito frio o lugar onde está, todos temiam que sua atividade fosse, assim como ele, devastadora: externamente frio, altivo e indiferente, internamente era furioso, indomável, destruidor.

Havia um certo menino em certa terra das chuvas muito longe de lá. Assim como o vulcão, um menino extremamente fechado, intocável, distante. Um menino que não se permitia sentir. Ou, se o fazia, ocultava muito bem esses sentimentos. Nada demonstrava aos demais, senão seu semblante impassível, sua força de macho, seu coração duro. No seu olhar errático, jamais se mostrava perdido, para não parecer fraco.

Um certo dia, o vulcão entrou em erupção. De seu lugar distante, isolado e frio, mostrou todo o seu poder destruidor. Produziu uma enorme nuvem de fumaça e cinzas que atingiu muitas pessoas. Essa nuvem não se podia ver. Mas sentiam-se suas conseqüências nos mais variados lugares, eis que imobilizou muita gente. Angustiantemente nos fazia perceber sua força sobre os demais.

O menino da terra das chuvas tinha a sua cabeça nas nuvens. Bastava trocar meia dúzia de palavras, para que me fizesse sentir presa em meu lugar. Dizer que estava pensando em mim, enquanto lia histórias de reis e castelos, conquistas e guerras, é, aparentemente, muito impessoal, mas eu me sensibilizei. Fazer o que? Sou sensível às nuvens de pó. Estou longe de casa. Sou alérgica. Natural que seja assim.

Natural PORRA NENHUMA. O menino faz com que eu me sinta presa a um espaço-tempo quando, sutilmente, demonstra o poder destruidor que a sua nuvem possui. Como o vulcão, mantém seu distanciamento, sua indiferença na maior parte do tempo. Não (se) afeta. No entanto, de tempos em tempos, como o vulcão, acorda e revolve a terra (e tudo aquilo que está profundamente sob ela) e traz à tona coisas que já não se pensava que existia. Que estavam soterradas sob várias camadas de tempo.

A verdade é que falar de reis e conquistas, batalhas e castelos, não é, senão, exercício de poder e dano. Ou seriam saudades de um tempo distante quando conquistas eram feitas e castelos construídos? Ou vontade (de poder) de sentir saudades de conquistas, castelos e reis que hoje já não podem ser?

Se é verdade que se sente saudade daquilo que não se pode ter, não é menos verdade que se sente saudade daquilo que nunca se teve e daquilo que nunca existiu. Nas guerras (sejam elas colonialistas, religiosas ou de ego) não há vencedores. Há apenas poder e dano. Ao final, ninguém ganha as batatas. Todos ficam sob as cinzas do vulcão. Paralisados e alérgicos.
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Cabeza de mujer llorando - Picasso
Museo de Arte Reina Sofía - Foto: J.

Pensou duas vezes se iria matá-lo.
Em princípio, achou melhor destruí-lo, retirar sua existência medíocre da face da Terra. Mas depois, avaliando melhor, concluiu que deixá-lo vivo, sofrendo as penas de ser ele mesmo seria uma boa vingança.
Pedro é um daqueles seres humanos revoltamente patético. Daqueles exemplares de humanos que não “é”, se é que algum dia “foi”. Nem como substantivo, tampouco verbo, Pedro “é”. Mas, vamos, o mundo está cheio deles... Pessoas que consomem recursos, produzem lixo, CO2 e, não raro, descendentes, mas que não fazem a mínima diferença. A não ser, claro, pelo potencial prejudicante e destrutivo das vidas alheias.
Dividiu um quarto, uma casa, dias de vida com essa criatura que só pensava em si. Só via o bem quando auferia alguma vantagem sobre os demais. Uma honestidade falsa, fundamentada por preceitos católicos rasos (daqueles que baseiam e encobrem as piores atrocidades). Uma humildade pífia, que ocultava, na realidade, um desejo de ser o melhor, o mais bonito e o mais correto à custa do uso e, pior, da subestima alheia.
Aplicação utilitarista dos esforços no contato interpessoal, visando adquirir vantagens ou benefícios. Isso, para ele, seria o equivalente a amizade para outras pessoas. Bom, sendo assim, não tinha amigos. Quando muito, colegas de trabalho, vizinhos e, obviamente, uma família, seio do qual proveio. Que realmente crê que ele é o melhor, o mais bonito e o mais correto, além de ter bom coração, naturalmente. Como ele, católicos por excelência!
Estava em sua vida com propósitos muito específicos. Tinha coisas que ele precisava (temporariamente, frise-se) para fazer mais cômoda sua estada na vida. Reduzir custos, fazer limpezas e, eventualmente, se divertir (quando outras companhias mais interessantes não pudessem ou não quisessem fazê-lo).
Assim viveu com ele por seis anos. No primeiro ano, tudo bem, lindo, sublime. No segundo, algumas características já despontavam dessa personalidade inicialmente tida como “forte”. Bem, uma mentira não se sustenta por muito tempo e, um dia, como uma vaga, é lançada para fora do oceano contra as pedras da costa. Com três anos de convivência, já sabia quem ele era. A partir daí, pensava diariamente em uma forma de matá-lo. Quando não tinha coragem de ir até o final e dar cabo do plano, cometia pequenas mortes diárias (as vezes mais de uma...) e se regozijava silenciosamente ao vê-lo sofrer em parcelas.
Ao final de seis anos, arrumou as malas com alguns poucos pertences de valor sentimental, doou roupas e todo o resto excedente para um albergue de pobres e foi embora. Nada disse. Tomou um ônibus e nunca mais o viu.
 
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