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Henry e eu

Ao longo da vida, tive alguns empregos. Uns legais, outros nem tanto. Na faculdade me aventurei no ofício de estagiária muitas vezes. Em uma dessas oportunidades de início de curso, minha atividade se restringia a tirar cópias de processos e atender telefonemas num escritório pequeno e conservador. Nas tardes longas ou quando não havia nada para fazer, tinha autorização para estudar usando os livros da pequena biblioteca disposta na estante alta de mogno, ou ler os processos para me “familiarizar” com as causas dos clientes. Meu chefe pouco (ou quase nunca) aparecia. Passava quase todo o tempo em atividades forenses. Restava ali, além de mim e do mobiliário, um jovem advogado recém-formado, contratado para controlar as causas mais corriqueiras e a mim. Um cara de uns 25 anos, loiro, magro, do interior. Sempre bem barbeado e de ternos cinza ou grafite. Nos momentos mais calmos do escritório ele também lia. Lia muito. Era quieto. Discreto. Parecia tímido. Às vezes, tinha a impressão de que ele não sabia o que fazer comigo. Parecia não saber mandar. Ou não querer fazer isso. Enfim, na maioria das vezes, ele era meu chefe direto. Por meio dele fazia minhas solicitações e justificações ao nosso chefe. Mas éramos econômicos com as palavras. E não raras vezes passávamos a tarde inteira mudos, lendo, cada um no seu canto, movendo-se apenas para passar o mate um ao outro. Foi através dele, em uma dessas tardes, que eu conheci Henry.
Assim, da maneira mais insólita possível, em um pequeno escritório de advocacia, fomos apresentados! Quinta-feira à tarde. Muito calor e pouco trabalho para fazer. O chefe, como de praxe, já tinha saído para as suas atividades externas com os clientes mais importantes.
Eu e o jovem advogado estávamos lá, lendo em silêncio entre um mate e outro. Ele, com seus processos e alguns livros jurídicos. Às vezes parava e se perdia na paisagem do belo jardim do prédio vizinho que se via pela janela. Eu, cansada da recorrência dos temas jurídicos, não raro levava um ou outro livro de poemas, literatura. Enfim, outras paisagens ou algo que me levasse para um mundo distante daquilo tudo. Afinal, eu precisava de ar. Novos ares. Constantemente.
Vendo que eu lia poesia, começamos a falar de literatura. Foi, aliás, a primeira vez que o via falar comigo algo que não era relativo às minhas atividades dali. Soltava frases curtas, um sorriso meio nervoso, entremeados com pequenas pausas, como que se estivesse espargindo pensamentos. Surpresa, eu respondia com frases breves, entre a concisão e o lacônico. Acho que temia assustar o interlocutor e fazer-lhe parar de falar.
Aos poucos, me perguntou o que eu gostava de ler e o que eu já havia lido. Sobre alguns autores, cujas leituras nos eram comuns, sorria timidamente e, de olhos baixos na mesa, tecia pequenos comentários sobre as histórias ou épocas em que os lera. Mas percebendo o ecletismo e a quase incoerência entre outros autores que eu já tinha lido ou os comentários que fazia, não conseguia disfarçar a surpresa, externada por pausas reflexivas ou expressões de sobressalto. Ao final, conversávamos.
Passada uma longa pausa, que parecia significar o fim do diálogo e nos levara às leituras de antes, ele perguntou se eu nunca havia sido apresentada ao Henry. Ante a minha negativa disse, entre a hesitação e a timidez, que achava que eu deveria conhecê-lo, que era um cara muito legal e tínhamos – Henry e eu – algumas coisas em comum, “apesar de tudo”. Esse “apesar de tudo” eu só entendi exatamente tempos depois. Na verdade, naquele momento, estava mais interessada em saber quem se tratava do que por que assim o tratava. Disse que o conhecera há um tempo atrás e que achava que eu iria gostar dele. Escrevia coisas legais. E que, se eu quisesse, poderia me apresentá-lo, inclusive. Eu disse, “ok, eu quero conhecê-lo”.
No dia seguinte, ele trouxe o velho Henry ao escritório. Antes de nos colocar frente a frente, porém, ele teceu algumas observações e fizemos um acordo. Henry era aquele tipo maldito, desbocado e sujo, tradicionalmente não recomendado para jovens garotas como eu. Perguntou se isso não me incomodava e se mesmo assim gostaria de conhecê-lo. Diante da minha afirmação, ainda meio incerto do que fazia, ele deu a segunda recomendação: “Henry não pode circular aqui pelo escritório”. Ele não podia ser visto pelo chefe ou por algum dos raros clientes que iam até ali. Era sexta-feira e eu poderia levá-lo comigo se eu quisesse. E assim solucionamos o problema. Com o meu ok, ele me alcançou um livro meio amarelado, com a capa rosa e um corpo de mulher retratado. Passei os olhos pelo título “Crônicas de um amor louco” e imediatamente o coloquei dentro da minha bolsa. Segui com meus afazeres como se nada tivesse acontecido.
Fui embora e me esqueci daquilo. Naquela noite sai como de costume. Voltei ao amanhecer como de costume e tive uma gigantesca ressaca no dia seguinte como de costume. No sábado à tarde, me sentei na cama e encontrei o livro jogado ao lado da cabeceira. Comecei a lê-lo e só consegui sair dali depois de devorar a última palavra da última página. Foi quando entendi o “apesar de tudo”. Era desbocado, sujo, maldito e escatológico mas também era visceral, autêntico, marginal e lírico. Durante a leitura, lembrava do jovem advogado e, por uns breves instantes, fantasiei que Henry fosse ele, engolido por esse sistema nojento o qual tanto criticava e resistia esbravejando. Escrevia relatos autobiográficos como forma de transgredir aquele seu cotidiano maçante e triste. Talvez fosse o contrário. Talvez ele fosse um tipo como Henry, soterrado por todo aquele monte de merda jurídica. Mas não.
Foto: internet
Na segunda-feira, voltei para a minha rotina no escritório com o velho safado na bolsa. Ao devolvê-lo, só consegui definir a experiência de uma forma, a única que me ocorria naquele momento, quando me foi perguntado “e então?”: “ducaralhu”. Ele abriu seu tímido sorriso ao confessar que “sabia que eu iria gostar do Henry”.
Dessa vez em diante, todas as sextas-feiras ele trazia Henry Chinaski para passar o final de semana comigo. E assim seguimos silenciosamente.

(N. A. : uma memória desencavada do baú por Andrea.)
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classe média

já me perguntaram "algumas" vezes o que eu acho, acho que acham ou deixam de achar da "guerra contra o tráfico" no RJ... eu me nego a aumentar a rede de absurdos que tem rolado diariamente sobre o tema. lamento decepcioná-los. por ora, deixo um videozinho bem legal, que minha querida amiga Ma-Yara me mandou...

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receitinha da juventude...

Ainda nessa vibe “remexendo o baú dos tempos idos” uma receita que sua avó não fazia (ou se fazia, era apenas para o seu avô, ao som de Bob Dylan), mas a cozinha maravilhosa de vandinha fazia... ah, se fazia...



Hemp Cookies Alegres

3/4 de xícara de chá de margarina sem sal, 3/4 de xícara de chá de leite, 5g de maconha esfarelada (“esmurrugada”), 1 ovo. Bata por uns 3 minutos e acrescente 3/4 de xícara de chá de açúcar, 1 colher de chá de extrato de amêndoas, 3/4 de colher de chá de noz-moscada triturada. Misture 1 colher de sopa de fermento em pó (1 pacote) e 2 xícaras de chá de farinha de trigo peneirada. Bata na batedeira até virar uma massa homogênea. Coloque numa forma untada e enfarinhada e leve ao forno médio para assar até ficar dourado. Ainda quentes, pode-se acrescentar raspas de chocolate para enfeitar. Melhor se degustado morno.
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paixão bandida

“Firme no seu processo de aproximação com a música brasileira – exposto até no trocadilho do título ‘O Rock errou’ – Lobão desfilou tocando tamborim pela Mangueira no Carnaval de 1987. Quase ao mesmo tempo iniciava a gestação de um novo disco, que deveria se chamar ‘Da natureza dos lobos’, nome de uma composição sua e de Bernardo Vilhena. A prisão no início do ano anterior [30/12/1986 quando chegava em casa dos estúdios da RCA, portando pequenas quantidades de maconha e cocaína], no entanto, estava longe de ser um caso encerrado. Em fevereiro de 1987, Lobão foi preso no Aeroporto Internacional do Rio ao voltar de Florianópolis com 1 grama de cocaína na bagagem. No mês seguinte, nova prisão pelo mesmo motivo, em Ipanema. Foi condenado a um ano. Mas sua hilaridade diante do juiz Paulo Panza da Vara Criminal da Ilha do Governador, acabou lhe tirando o benefício do sursis. Assim, no dia 20 de maio, Lobão foi encarcerado, primeiro na Polinter e depois no Ponto Zero.

O disco novo trocou de nome – para um mais apropriado “Vida Bandida” – e foi completado por intermédio de vários habeas corpus. A convivência com o submundo nos 32 dias que passou preso naquele ano, aguçaram sua sensibilidade social. Na cela da Polinter consagrada na expressão “alô galera da 11”, Lobão dividiu o boi (buraco no chão a título de privada) com, entre outros, os chefes do tráfico de Manguinhos, Gilmar Negão, e do Morro Santa Marta, Zacarias, ambos membros do famigerado Comando Vermelho. Lá, respeitou e se fez respeitar pelos traficantes. Tanto que, depois, ao subir no Morro da Mangueira, foi recebido com uma salva de tiros ritmados: o soldado de vigia o reconheceu e gritou ‘vidaaa, vida, vida, vidaaa bandidaaa rá-tá-tá-tá...”

DAPIEVE, Arthur. BRock: o rock brasileiro dos anos 80. 2ª ed. São Paulo: editora 34, 1996, pp. 49-50.

O bom da antropologia é que (me) permite pensar criticamente a partir de coisas que gosto (muito). O Rock, por exemplo, de estilo de vida passou a objeto de pesquisa. O Lobão, de paixão da infância a artefato cultural produtor de sentidos...
 
Roqueiros também amam: Lobão e uma fã, depois do show - Foto: by Lobon


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.velhos restos.

ela era a carne de primeira no balcão do açougue.
o bife fritando no óleo quente da tua chapa.
a sobra (com nervo retorcido) no canto do teu prato,
relegada a resto depois de te fazer sentir-se farto.
agora considerada (apenas mais) uma alternativa
frente à crise da tua bolsa
ou (o desejo de) subida do (teu viril) dólar.
mas,
não tenta mais requentar esse pedaço de carne.
agora é demasiado tarde.
ela virou comida congelada.
com prazo de validade vencido.
.30/10/2008.
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pede pra entrar!

Um aquece antes do...


encontro com o autor do livro...

 
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