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SETE VIDAS

Terça-feira de sol em Gotham City. Raridade depois de algumas semanas de chuva. Uma luminosidade amena e um vento fresco compunham o dia e tornavam as coisas mais fáceis para quem precisava deslocar-se pelo centro da cidade. Era início da tarde e eu vinha do mercado público em direção ao escritório, na rua da ladeira. Caminhava a passos relativamente rápidos e firmes pelo local onde sempre há hordas de pombas, transeuntes apressados e um grupo de ciganas que oferecem a leitura da sorte por uns trocados. Apesar deles, eu não me importo. É sempre assim. Ao passar pelo paço municipal, percebi, no momento exato em que olhei pra ela, que uma cigana me olhava. Cruzamos os olhares, estabelecemos um contato. “Putz, lá vem”, pensei. Ela vinha na minha direção dizendo “moça, moça, deixa eu te falar!”,“nem vem, tô com pressa” eu disse com cara de poucos amigos. Mas ela seguia caminhando ao meu lado, apressando o passo para acompanhar o meu. Eu, com aquele gesto rápido, antipático e preconceituoso, apertei a bolsa sobre o braço e fingia ignorar a presença da mulher que caminhava ao meu lado. Ela seguia andando junto a mim quando proferiu sua primeira afirmação: “tu já conheceu teu marido”, “não te perguntei nada”, eu disparei impulsivamente. “E ele já tá te cercando, linda”, “eu não quero saber de coisa que não te perguntei, sai fora”, devolvi rispidamente e apressei ainda mais o passo. Alguns metros mais, eu cruzaria a rua, se o movimento de carros ou a sinaleira permitisse. Tive de parar, esperando a sinaleira fechar. Três ou quatro passos antes, ela parara, com as mãos na cintura. “Não precisa ter pressa, ele é teu marido por sete vidas”, ela complementou, nas minhas costas, com a maior naturalidade do mundo. “Era só o que me faltava”, balbuciei indignada. No restante do caminho, pensei nas possibilidades que se me apresentam e não via nenhuma delas como passível de enquadrar-se na afirmação da cigana. Além disso, se esta fosse mesmo a minha sina, não posso negar a minha frustração ao constatar o quão sem criatividade é o destino. Ou quão transgressora eu fui (ou sou) na minha existência quase-felina. Casar-se sete vezes (ou, pior, em sete vidas!?!) com a mesma pessoa - quando poderia variar uma ou duas vezes, ao menos - é realmente um castigo. E para ambos, talvez...

Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!
(Non, Je Ne regrette Rien - Édith Piaf)

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si, soy yo…
y la voz de mi pensamiento...
mis pensamientos...
pensamientos del corazón.



 
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