Este texto foi escrito em 2008. Baseia-se em uma situação que experimentei, envolvendo pessoas que fizeram parte da minha trajetória naquele e neste momento. Talvez (e por esta razão) não haja, atualmente, melhor tradução para as escolhas que fiz...
SALA 109
Gotham City, 24 de agosto. Segunda-feira chuvosa.
Mais uma daquelas com chuvinha fina tocada a vento frio que assobia. Parece
cortar a pele e gelar os ossos. Olho pro lado, Pietra dorme enrolada, sem
quaisquer preocupações com o que acontece lá fora. Certa ela. E sortuda ainda,
já que poderá continuar neste embrólio com as cobertas, enquanto que a mim (o
destino é mais sarcástico), toca ir trabalhar.
Com toda a
minha movimentação errática, acompanhada pelo pensamento reiterado de
transgredir todas as normas laborais e permanecer ali, ela acorda, se
espreguiça e me olha com um arzinho, misto de pena e enfado, por perturbá-la
durante o sono matinal, ao revolver os cobertores para sair da cama. Tudo bem.
É a ordem das coisas, penso, tentando me consolar ao entrar no banho.
A chuva
persiste. Com mais vento, é verdade. Mas a possibilidade de parar de chover ao
longo do dia era considerável também. O caminho para o trabalho estava como em
todos os dias de chuva. Trânsito. Sinais. Motoristas mal-educados. E
desembaçador do vidro do carro inoperante.
No escritório,
tudo exatamente igual à segunda-feira passada. O mundo seguia tentando acabar
entre os prazos fatais e o chefe continuava fazendo de tudo para que isso não
acontecesse. À custa da minha síndrome de proletária e senso de
responsabilidade, combinada com doses cavalares de café com pão de queijo do
Zaffari. Pilhas de papéis sobre a mesa, computador trancando de tempo em tempo
e motoboys entrando e saindo, espargindo no ar umas gotículas de chuva entremeadas
com cheiro de óleo e borracha das roupas de chuva molhadas. Penso na minha preta,
dormindo tranquila na cama. E passa o dia.
Final de
expediente, não sem atividades extras para salvar o mundo do colapso
derradeiro. Mais alguns minutos e adeus intervalo da aula. Ao menos a chuva deu
uma trégua. E o vento já está bem mais ameno. Entrei no carro, liguei o rádio e
peguei a Bento. Rumo ao campus do vale. Aula de antropologia de gênero e
parentesco. Textos sobre família (e a minha, lá em casa, muito bem, obrigada).
Sala 109, no
fundão do corredor. Entrei e Leonor já esperava o resto do pessoal chegar para
começar. Ela com o mesmo jeitão de sempre, meio escabelada, mas sorridente.
Espécie de estilo antropológico é o andar desgrenhado em alguma medida. Há quem
reclame dela, achando-a meio mau humorada ou grosseira. Não é meu caso. Sempre
nos demos bem. Na verdade, gosto dela. Pela paixão profissional que demonstra e
pela forma como dá aulas. Por pior que seja o assunto, ela faz com que a
antropologia pareça a melhor carreira que alguém possa almejar (ao menos alguém
como eu), em detrimento de todas as maledicências que lhe imputam. Sobretudo as
de caráter econômico.
Sala cheia,
uns 30 alunos. Me sento lá no fundo, última cadeira. Leonor inicia sua explanação
sobre as modificações sociais, o voto das mulheres e se vai. Caminha lentamente
ao longo do quadro, faz alguns apontamentos. Intercala uns comentários, gracejos
ou provocações aos alunos que ela lembra o nome. Tem um falar calmo, entre
so(risos) e gestos lentos. Uns alunos perguntam. Outros anotam.
Percebo uma
movimentação próxima a uma cadeira lá na frente. Uma menina estende o braço
como que para pegar algo que tivesse caído ou que estivesse próximo ao chão. Me
inclino para frente para ver o que era. Uma gata. De um preto liso e sedoso,
salpicada de dourado brilhante. Para ficar assim, só poderia ter sido vitimada
por uma brincadeira do acaso, que lhe assoprou um fino pó semelhante a ouro
sobre o corpo. Olhos verdes. Segura de si. Esguia e altiva. Sentada ao lado da
fileira de cadeiras. Primeira da fila.
Atentamente,
ouvia e acompanhava a movimentação de Leonor. Perfeitamente à vontade. Olhava
para ela como se estivesse analisando a explicação, percebendo o que havia por
trás dos conceitos naturalizados de família e parentesco. Em alguns momentos,
ela se distraía. Perdia uma parte da explicação e olhava para os alunos em
volta. Um barulho e ela virava para ver o que era, junto com outros dispersos.
Mas voltava às explicações. Até um outro momento, onde alguém fizesse qualquer
espécie de sinal com as mãos e ela ia ver o que se tratava. Calmamente,
circulava por entre as cadeiras, socializava entre alguns e voltava para o seu
lugar lá para frente.
Um aluno saiu
da sala para atender o celular e ela o acompanhou. Dar um tempo. Arejar as ideias
no corredor. Uns minutos depois, uma menina atrasada entrou, com quem ela
voltou novamente. Seguia à vontade na sua condição de gata livre pensadora. Se
a antropologia está chata, na rua está pior, devia ter pensado. Mas tinha
dúvidas. E em mais de um momento. Enquanto Leonor falava encostada na mesa, ela
sentou ao lado da porta. Olhava para a porta e olhava para Leonor. Era claro.
Esperou, esperou. E Nada. Lavou a pata, lambeu, passou na cara. Leonor seguia
falando sobre mapas de parentesco e o modelo de família brasileira de Freyre.
Ela ouvia tudo quieta, sentada, próxima à porta fechada. Olhava para Leonor. E
ela seguia juntando uma ponta na outra, costurando o argumento e andando
lentamente. Aproximou-se da gata e ela da porta. Abriu gentilmente para ela
sair. Falando e sorrindo. Continuou com as reflexões até o intervalo.
Saí para
buscar um café e a movimentação do corredor era grande. Alunos conversando em
pequenos grupos, rindo e contando os fatos do final de semana. A gata sumira
entre os passantes. Fim do intervalo e a aula recomeçava. Todos começaram a
voltar para os seus lugares. A porta aberta e o movimento de alunos no
corredor.
Um colega fez
um apontamento que parecia interminável. Eu me distraí da metade pro final. A
objetividade e o poder de síntese do raciocínio é uma dádiva, pensei. Coisa
para poucos. Quando olhei para o lado, vi a gata. Deixando-se acariciar por um
aluno próximo a mim. Como todos aqueles que sempre sabem exatamente o que
querem e para onde vão, ela se permitia entregar-se às carícias dos
desconhecidos sem qualquer pudor, quando o assunto parecia meio tedioso. Ela
estava certa. Fiquei acompanhando o trajeto que ela percorria entre as
cadeiras, esperando que ela viesse em minha direção. Rabo em pé, levemente
arqueado na ponta. Ao chegar mais próxima, estendi o braço. Me estiquei o
quanto pude para tocar-lhe a cabeça. Ela a empurrou contra a minha mão em um
movimento que parecia desenhar ondas no ar. Sussurrava baixinho “vem cá, vem cá
comigo” e ela, soberbamente, avaliava o meu pedido suplicante, se digno de
deferência. Todos mantinham-se atentos à fala de Leonor, enquanto eu já me
perdera há tempos das questões familiares... Insistente, já dava leves batidas
na lateral da coxa, tentando convencê-la a chegar mais perto de mim.
Ela veio
em minha direção mas subitamente parou. Como quem lembra de ter esquecido algo,
parecia absorta em pensamentos. Calculava. Em segundos, preparou-se e deu um
salto. Acomodou-se no meu colo, esfregando a cabeça na minha mão para que eu a
acariciasse. Assim o fiz, surpresa com aquela iniciativa. Ronronava e, em sua
expressão de deleite, podia crer que sorria. Pretendia afagar-lhe o dorso e a
cara; não propriamente servir-lhe de cama. Se assim quis, não me opus. Tinha o
corpo todo salpicado de ouro. Os dedinhos das patas, uns pretos, outros róseos,
reproduziam sua singularidade. Abria-os no ar e fechava-os, como se estivesse
massageando uma nuvem.
Lavou a cara e
aninhou-se. Deitada sobre o meu colo dormiu. E sonhou. De certo perseguia (ou
fugia) de qualquer um dos membros da família patriarcal brasileira de Leonor.
Sacudia as patas imersa em um sono profundo, fazendo com que a “ficção
fundamentada” em questão fosse esta cena e não o modelo de família moderna.
Assim fiquei até o final da aula. Sequer podia me mexer na cadeira. Escrevia no
caderno meio atravessado, com a outra mão amparando seu corpo sobre minhas
pernas juntas. Os colegas próximos olhavam e lançavam um sorriso cúmplice,
solidário. Leonor seguia com a aula lá na frente. E eu já pensava no final do
período. Pensava na Preta, lá em casa, e na forma como a gata dormia.
Ao final da
aula, esperei o máximo que pude para acordá-la. Recolhi as minhas coisas e
acordei-a, colocando-a no chão. Ela se espreguiçou, me olhou, sentou-se e
começou a lamber a pata, passando na cara. Lambeu a barriga e coçou a orelha.
Indiferente à movimentação dos alunos, ao arrastar de cadeiras. Segui andando
com os demais colegas que saiam. Não queria me despedir. E não olhei para trás.
No estacionamento
encontrei Leonor. Perguntei a ela se as aulas seriam sempre naquela sala. “Sim,
eu gosto desta sala. Pedi para me mudassem para a sala da gata” respondeu.
Tomamos a direção dos nossos carros. Me despedi e entrei no meu. Liguei o rádio
e fui embora. Admirando um pouco mais Leonor. Estava claro para mim que ela
gosta de gatos. E pela alteridade em prática e respeito mútuo entre elas,
poderia afirmar que, assim como aconteceu comigo, Leonor convenceu a gata de
que ser antropólogo é a melhor escolha que se pode desejar fazer...