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primavera caracolina



Centenas de caracóis na minha calçada 
carregam silenciosamente 
suas conchas na pedra molhada 
marchando juntos 
na rua pouco iluminada 
sabe-se lá para onde.
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sapatos

De vez em quando
Quando a saudade aperta
Eu visto os meus velhos sapatos
Pra me lembrar de ti.
Andando pela casa com
O toque-toque agudo
A te chamar.
Os velhos sapatos e eu
Com a esperança que tu ache
Novamente o caminho
Até a gente.

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Eles se amam. Todo mundo sabe mas ninguém acredita. Não conseguem ficar juntos. Simples. Complexo. Quase impossível. Ele continua vivendo sua vidinha idealizada e ela continua idealizando sua vidinha. Alguns dizem que isso jamais daria certo. Outros dizem que foram feitos um para o outro. Eles preferem não dizer nada. Preferem meias palavras e milhares de coisas não ditas. Ela quer atitudes, ele quer ela. Todas as noites ela pensa nele, e todas as manhãs ele pensa nela. E assim vão vivendo até quando a vontade de estar com o outro for maior do que os outros. Enquanto o mundo vive lá fora, dentro de cada um tem um pedaço do outro. E mesmo sorrindo por ai, cada um sabe a falta que o outro faz. Nunca mais se viram, nunca mais se tocaram e nunca mais serão os mesmos. É fácil porque os dias passam rápidos demais, é difícil porque o sentimento fica, vai ficando e permanece dentro deles. E todos os dias eles se perguntam o que fazer. E imaginam os abraços, as noites com dores nas costas esquecidas pelo primeiro sorriso do outro. E que no momento certo se reencontrem e que nada, nada seja por acaso.

Texto de Tati Bernardi que poderia ser perfeitamente meu, pois retrata exatamente como eu me senti, um dia (um dia que nunca acabou). Mas nunca seria meu, pois eu jamais conseguiria ser assim, tão precisa. 

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vazio de um dia de um processo de uma vida

A vida é uma sucessão de imponderáveis.
Exatamente por isso, é incrível e totalmente desprovida de qualquer garantia.
Tudo e todxs têm um tempo, seu tempo próprio, que nos é indecifrável.
A vida não tem um sentido em si.
Mas talvez um conjunto múltiplo de possibilidades
E de pequenos sentidos.
Mutáveis, provisórios e lindos.
Com os quais nos cabe lidar.
Por mais amedrontador e inseguro que isso nos possa parecer
Só nos resta aceitar.


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soluço

Numa manhã ensolarada de novembro, no interior do T9, uma jovem mulher chorava silenciosamente sentada ao meu lado, enquanto olhava as ruas passando lá fora, pela janela. Por sob os grandes óculos escuros, as lágrimas rolavam quietas e salgadas pelo seu rosto, e eram aparadas, ao lado da boca, com o lenço de papel. Ao seu lado, só me ocorreu dar-lhe o lenço. Embora eu também tivesse vontade de lhe dizer “chora, chora à vontade”. Eu não sabia e nem queria saber os motivos. Mas a julgar pela minha vida, há muitas razões para chorar. 

Tira de Ricardo Siri Liniers

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(des)equilíbrio

Imagem da Internet

Eu era bem pequena quando aprendi a andar de bicicleta. Usei aquelas com as rodinhas laterais, até uma determinada época em que meu irmão começou a me ajudar a andar sem elas. No início retirou uma, de forma que, se eu perdesse o equilíbrio, ainda podia contar com o apoio da outra em um dos lados. Dependia de mim manter o controle da situação e me permitir pender apenas para aquele lado do apoio. Fiquei um tempo assim, perneta no equilíbrio. Até o dia que decidimos (não lembro se foi uma decisão conjunta ou não, mas consideremos assim) retirar a segunda rodinha de apoio. Veio ele com a chave de roda a desatarraxar meu ponto de equilíbrio, minha muleta, com uma serie de recomendações.
Agora, eu teria de me equilibrar em apenas duas rodas na bicicletinha aro 16, mas com o compromisso de que, nas primeiras vezes, meu irmão me ajudaria. Isto significava andar pequenos trechos, devagar, com ele me guiando, segurando no banco, do meu lado. E ele efetivamente fazia isso. Apesar da diferença de 9 anos mais que eu e vivermos às turras (por eu brincar com os carrinhos, botões e bonecos dele), ele cuidava de mim e corria junto na rua de saibro, todo senhor de si. Ele seguia junto e, entre intervalos, largava o banco. E claro que assim que ele dizia que o largara, eu perdia o equilíbrio e quase caía. Na maioria das vezes, ele já tinha soltado o banco antes de avisar, mas eu só vim a saber tempos depois. Aí ele voltava a segurar ou me mandava diminuir a velocidade, tentar parar sem cair. Sobre a queda, pairava a ameaça de estragar a bicicleta e a interdição das aulas. Tudo delicadamente acertado aos gritos, no meio da rua. Em uma das vezes, ele soltou o banco e seguia correndo junto, sem avisar. Apenas dizia, “vamo guria, presta atenção que eu vou largar” e eu pedindo que não ainda, que me desse mais um tempinho. E ele ali, correndo e gritando “vou largar, vou largar”. Foi quando ouvi ele gritar “vou largar, larguei!”, mas o grito já não era no meu ouvido. Ansiosa e sem me dar conta, já havia me afastado dele, que já não mais corria junto. Andava sozinha e não sabia direito como parar. Assustada, perdi o equilíbrio e cai na frente da casa do velho Peralta, que acompanhava tudo do muro e sempre tinha uma reclamação pra tudo.
“Levanta, vamo! Levanta a bicicleta e sai do meio da rua! Vamo guria!” ouvia meu irmão gritar, se aproximando. No susto, levantei e puxava a bicicleta para deixá-la de pé. “Te machucou, não né, então deu. Acabou de bicicleta pra ti!”. Na queda, arranhei a mão e esfolei o joelho. Nem sentia o fio de sangue que escorria na canela. Olhei pro lado o velho assistia a tudo sorrindo. Meu irmão me tomou a bicicleta e seguíamos em direção à casa. Na volta, proferia palavras de incentivo, dignas da pedagogia familiar de fazer inveja no exército israelense: “Bocaberta! Já tava andando sozinha muito antes de eu falar que ia largar. Burra!”
Chegamos em casa meu irmão guardou a bicicleta e eu fui tratar dos meus ferimentos. “Anda lá no tanque, lavar com sabão isso aí!” alguém me gritou e eu já previa o que estava por vir.

Sentada depois, no degrau da escada, eu lembrava faceira o trajeto que andara sozinha, sem rodinhas, o frio na barriga, o ventinho que passava por mim. Já pensava nos próximos dias. Isso até eu começar a sentir meu joelho latejar (e queimar quando eu flexionava para andar), me fazendo lembrar da queda, do velho Peralta risonho no muro, do discurso do meu irmão e de que foi bom enquanto durou. E que agora eu tinha um joelho doído para curar.
 
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