0

...coração quente



Vento ventando lá fora.
Uma brisa fria que
Entra pela janela
E me arrepia a pele
Na noite quente de verão.
Imediatamente lembro de ti.
Da tua mão fria
Quando agarra minha cintura.
E do calafrio da surpresa
Entre o calor dos nossos corpos.
0
Meu bem, imploro.
Não me deixe assim, tão sozinha com as minhas ideias.
Você sabe.
Na escuridão da noite habitam muitos tipos
Diferentes e provocadoras.
Na minha mente, há muitos monstros.
Em alguma ocasião eu posso sair, aborrecida por essa sensação de abandono, e me perder.
E não mais voltar.
0

sobre gatos e homens...


[...] o gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer. [...]
 
Ode ao Gato - Pablo Neruda


Os gatos são gatos porque nascem gatos. Para Lyotard, “se humanos nascessem humanos tal como os gatos nascem gatos (com poucas horas de diferença) não seria possível ¾ e nem sequer digo desejável, o que torna a questão diferente ¾ educá-los”. Contudo, o homem necessita preencher sua (in)completude para tornar-se mais humano. É preciso apre(e)nder valores, (re)conhecer saberes e atingir resultados. É preciso não perder tempo: ensinar depressa, aprender depressa, esquecer depressa. Para acompanhar o desenvolvimento, tornar-se mais civilizado, mais racionalizado, enfim, mais humano, é preciso ir em busca do tempo perdido. Perder tempo apenas com as informações úteis. É preciso, pois, controlar o aprender. Cria-se a disciplina, a ordem, o código a ser seguido. A lógica violenta da racionalização produz a violência totalizante do ensinar. O controle do processo de aprender, através de um único caminho para se percorrer, uma única verdade a se encontrar e o único resultado possível. Uma única fé para uma única salvação. Para cada norma um desvio, para cada desviante anormal uma pena. “Ao vencedor as batatas!” Àqueles que não se enquadram há a tolerância pela justificativa psicologizada, a medicalização de melhoramento ou a punição pela repetição da mecânica do aprender. Mas é possível controlar o apre(e)nder? É possível apreender sem a verdade? A comunicação atende à lógica da linguagem pela designação, manifestação e significação. É preciso nomear as coisas de maneira específica, através de estruturas impostas de maneira arbitrária, como categorias inatas do homem, universais, objetivas, imutáveis. O discurso científico do poder e da linguagem como código transparente representam a realidade, buscam e (des)cobrem a verdade do objeto isolando-o. Mas, apesar disto há o sentido. Algo incorpóreo que subsiste (in)diretamente na proposição. Está além e aquém das palavras elas mesmas. Mas ainda assim, é preciso dizer a verdade. Eu, consciente, penso e desvelo um mundo dado. Para ser salvo, é preciso, através da doutrina (e somente através dela), ter a revelação do objeto. E o discurso pedagógico legitima seu lugar e sua fala pela voz do saber, aquela que o aluno aprende e (re)produz. De maneira organizada, normatizada e segura. Sem conflitos ou imprevisibilidades. Entretanto, existem os discursos apesar disto. Há o esquecimento: a ilusão referencial que naturaliza a palavra (e o objeto) e a ilusão de sermos a origem do que dizemos. Há a ruptura da tensão entre a polissemia e a paráfrase, que articulam mesmo e diferente, dito e não dito, sujeitos e sentidos. Há a inquietação do questionamento, da busca do sentido daquilo que se busca. Há, pois, a vontade de (in)subordinação, a vontade de transgressão, de desvio, de fuga.
 
 
0

pedaços

Eu já me parti em milhares de pedaços.
E cada vez que eu me despedaço
Eu tenho de me remontar.
E às vezes ao me recompor algumas peças sobram.
Parecem que não encaixam
Que não me pertencem.
E fico ali, parada, perdida,
Com meus caquinhos nas mãos
Buscando descobrir de onde saíram.
Às vezes, é preciso me decompor novamente.
Me despedaçar.
Para recolocar as partes de mim
Encontrar o lugar.
E sempre acabo com uma pecinha sobrando
Que não encaixa.
E quando não dá certo,
Guardo meus pedacinhos numa caixa.
Já tive épocas
Que os acumulei em grande número.
Em outros momentos alguns perdi.
Vários eu dei,
Como quem doa um raro presente.
Muito poucos vendi.
Mas sempre fica faltando um pedaço,
Vazio, inquieto, triste.
Por onde passa o vento.

0

bjus insuportavelmente poéticos

Foto de Brassaï - Década de 1930

para uma pessoa que sabe que
o amor paira sobre as convenções
os tratados e as leis
a moral e os bons costumes
existe apesar dos gênios
dos ciúmes e dos horários de trabalho
existe apesar do tempo
da penhora da aliança de compromisso
e do extravio do livro do Machado
existe apesar de deixarmos o amor partir
para que ele volte
se assim por bem entender
existe apesar do porre que tomamos para esquecê-lo
dos quilos a mais que ganhamos
e dos esquecimentos da lista de compras
existe apesar de tudo que idealizamos
e que não foi possível concretizar.
e continua, en-fim,
de maneira incondicional
resiste às intempéries,
enfrenta a vida,
desafia a dor e a morte.
3

entre olhares

Ele lançava um olhar fixo sobre mim. Curioso, investigativo, como se discretamente procurasse na superfície do meu corpo algum indício que respondesse às suas perguntas. Silenciosamente, o olhar dele me encontrava por entre as outras pessoas e, assim, ele me percorria e me tinha sob seu controle. Eram como duas pedras que reluziam, frias e magnéticas, que me seguiam a cada movimento. Mesmo que eu quisesse, jamais me perderia entre uma multidão de passantes sob aquele olhar. Mas eu não queria. Na verdade, gostava de ver até onde ia. Sem desafiá-lo, fitava-o e sustentava o meu olhar por alguns instantes até que, por fim, desviava os olhos.
Às vezes, podia jurar que via seus lábios moverem-se. Pareciam esboçar alguma intenção de me dizer algo. Mas dificilmente partia dele a iniciativa de dizer qualquer coisa que fosse. Quando ocorria, era muito mais fruto de algo que eu anteriormente comentara vagamente e que lhe deixara pensando alguns instantes. Nestas ocasiões, ele me olhava fixamente e, em geral, as frases iniciavam com “Por que tu acha que...” ou “O que tu quis dizer quando...”. Eram produtos da sua investigação sobre mim. Ou, talvez, eram produtos da sua investigação sobre si: sobre o impacto que seu olhar meu causava.
0

Dilemas

Ilustra Brandt Peters

O que fazer quando chegamos a um impasse? Eu gostando suficientemente dele para querer estar com ele em vários momentos, mas sem saber objetivamente se isso significa mudar para investir em nós? Se somos muito parecidos em várias coisas? E talvez sejam elas que imponham uma barreira entre nós? E quando suspeito que essa barreira, para ser transposta, implique modificações em cada um de nós? E, bem, se investir em nós exija modificações em nossos eus, talvez isso queira significar que nos interessamos não um pelo outro, pelas pessoas que somos, mas pelas pessoas que gostaríamos que cada um de nós fôssemos. E se talvez conseguíssemos vir a ser o que gostaríamos que fôssemos isso não garantiria, de igual forma, que nós fôssemos acabar juntos. Assim, é legítimo querer que alguém mude para fazer acontecer um amor? É legítimo mudar para fazer acontecer um amor? Haver, como pré-requisito para acontecer um amor, uma mudança, já não significa que não existe a possibilidade de um amor nessa relação? E a dor que essas mudanças implicariam? É legítimo querer a mudança, sabendo que ela representa uma dor imposta sobre aquele que queremos que mude? E se gostamos suficientemente do outro, a ponto de não suportar a ideia da dor que a mudança causaria, significa que as causas da mudança podem ser abstraídas e que devemos desistir da mudança? Ou se não quisermos impor essa dor naqueles que amamos, significa que devemos abdicar da mudança e arcar com a nossa dor pelo amor não acontecido? E se nós não estamos dispostos a mudar? Ou se, mesmo dispostos, não estamos dispostos a arcar com a dor que ela causa? Se as pessoas estão sempre mudando e sofrendo, e o amor se dá nessa relação, seria o amor apenas mais um laço derivado e produtor de dor, inevitavelmente? E, assim sendo, amar significa impor dor àquele que amamos e suportar a dor que ele nos impõe com as mudanças? E, por fim, quem amamos? A si próprio, o outro, a nós, a dor ou essa combinação?
0

A espera

E eis que ao final do dia
Sentia uma espécie de melancolia
Uma pequena tristeza sem explicação.
O mar se fazia refletir em sua retina
Que o olhava através da janela.
Pensava em si, sem rumo, e
Desejava a companhia da amada.
Sabia-se distante por alguns quilômetros e
Afastado por longas ausências, por vários gestos frios.
Não sabia o que esperar daquele relacionamento
Se é que alguma vez existira.
0
Para M. X.



Eu vi teu olhar perdido naquela esquina.
Eu reconheci teu desatino, tua dor.
Eu senti a minha solidão em ti.
Eu pensei duas vezes
Em te acolher nos meus braços
E te dizer que isso iria passar.
Que um dia isso tudo
Nada mais significaria.
Mas não.
Eu não fiz isso.
Porque a tua dor é a minha dor.
E quando eu a vejo em ti
Eu a reconheço no que eu já vivi.
E se hoje é passado, vazio de sentir.
Também é memória lancinante
Que reaviva em mim
Cada vez que eu vejo
Teu olhar de tristeza e desrazão.
0

“Boulevard Diderot, Paris” – Henri Cartier-Bresson, 1969

porque se não vai
me colorir as manhãs,
me presentear com sorrisos,
me alegrar as tardes,
me roubar beijos e
bagunçar os meus dias,
é melhor que nem se apresente!

0

Por (de)vir


“aliás, fico feliz em constatar que o ponto de demência de alguém seja a fonte de seu charme.”
Gilles Deleuze

Eu poderia ter guardado em meu velho baú
Trezentas coisas, entre sonhos, projetos, ideias e planos de viagem.
Entre nenhuma delas ele estaria ou eu o haveria previsto.
Ele apareceu quase tão instantaneamente no caminho
   quanto eu desejaria que ele habitasse meus guardados, 
   minhas memórias, meus planos.
Entre muitas falas, sorrisos sonoros.
Observações à queima-roupa.
Piadas deliciosamente sem sentido.
Entre os desejos, criações de cotidianos.
Burlas, jogos de palavras, desvio de olhares.
Só é possível desejar o inimaginável, o porvir.
Entre o mistério, o segredo, o sonho.
Enquanto todos vivem a realidade trágica.
Nós construímos a mais fascinante de todas as invenções.


0
incrível constatar que a minha felicidade nunca é plena, completa. quando tudo parece ter dado certo e entrado nos eixos surge uma pedrinha no meu sapato...
0

das pequenas perversões

apesar de sua idade adulta
seu jeito de menino é tão marcante
que as vezes me confunde
e me sinto meio pedófila...
0

entre sorrisos e balas

ela veio ao meu encontro sorrindo aquele
sorriso amplo que iluminava todo seu rosto.
os olhos graúdos cintilavam como duas estrelas.
alegre, trazia em uma das mãos um saquinho de balas
(daquelas que, quando estouram na boca, liberam pequenas risadas)
e três balões coloridos suspensos por cordões.
de coração aberto, queria me mostrar suas balas e
conversar sobre as cores das flores.
era a personificação da doçura
com seu jeito de menina.

e eu com meu temperamento irritadiço,
não soube tratá-la como merecia.
assustado, estourei seus balões e
com meu coração empedernido,
a deixei vacilante e confusa.
mostrei-me incomodado por sua aproximação.
fui rude, áspero, não sabia como agir.
não podia lidar com tamanha ternura.
ela afastou-se desapontada, triste.
sem ter podido ao menos
contar suas histórias, mostrar suas balas e
compartilhar seu carinho.


ao vê-la distanciando-se, indo embora
pensei em desculpar-me.
não queria deixá-la ir.
mas não conseguia dizer algo
capaz de fazê-la entender
o quanto sua presença produzia um
encantamento lunático sobre mim.
temia que nunca mais voltasse.


e justo quando mais gostaria
de dividir com ela suas balas,
ouvir suas histórias,
encantar-me com seu sorriso
uma dor sufocante me oprimia o peito.
deixava-me ainda mais angustiado e vulnerável.
meu afeto desajeitado
não conseguia perceber
que tudo isso era porque
apenas tinha medo
do que não sabia que sentia.

0

Pausa

Na tarde risonha de sol
As copas das árvores bailavam lentamente
Ao som do vento fresco do outono.
Sentada próxima à janela
Eu ia longe
Para junto de ti.
E minhas duas companhias silenciosas,
O livro e a gata,
Me olhavam de tempos em tempos,
Tentando saber
Quem de nós dois
Haveria de chegar primeiro.

0

reflexões sobre o cio

para ler ouvindo céu.

A gente mal se encontra.
E quando se vê nem se fala.
É melhor assim.
Que eu siga te conhecendo pouco.
Quase nada.
Para não sofrer ao descobrir
O quanto tu é lindo o suficiente.
E suficientemente bom para
Eu não merecer.

0
Ilustra: DerbyBlue
0

promessa



- Me escreve um poema?

- Sim, vou pensar em um tema.

- Mentiroso! Não vai fazer nada.

- Ah, até tenho um aqui: sobre uma menina que fantasia amores com pessoas desconhecidas.

- Mas tu está sem tempo...

- Mas poema a gente faz nos intervalos da vida.

- Quando a gente acorda para sonhar!

- Exatamente.
1

jogo de olhar

Ele chegou atrasado e jogou o corpo bruscamente na cadeira ao meu lado.
Virou pra mim, olhou dentro do meu olho e disparou, quase automaticamente:
- Eu te chuparia se tu deixasse.
- Eu te deixaria se tu me chupasse.
Era a única coisa que poderia responder, sorrindo e olhando fixamente dentro dos olhos dele.
Baixamos os olhos.
1

Palavras Perdidas

E eu que pensava que não era ciumenta, estou agora me remoendo de ciúmes por dentro. Mentira. Eu sempre soube. Apenas mantinha essa constatação sufocada sob meu orgulho. Eu sei que quem procura acha, principalmente quando sai em busca de algo que pensa existir. Quem está disposto a encontrar alguma coisa nunca acaba de mãos abanando. Se não encontra, inventa. Qualquer expressão, referência ou menção, serve de pretexto. Nenhuma palavra significa uma única coisa e, na minha cabeça, tudo pode ser decupado em zilhões de sentidos com múltiplos significados e mensagens subliminares. E daí para a leitura falha (espécie de ato-falho não dito, mas lido), é um pulo. Para isso, nada melhor que ler, reler, tresler e voltar a ler cada palavra de cada mensagem recebida. Variar a entonação, questionar cada vírgula, cada riso, cada trocadilho. Tudo em busca de uma resposta que não está ali. Um indício. Um sinal. Uma pista. Dando sucessivos F5 na esperança de que, entre as atualizações do email ou das mensagens do Facebook, eu teria mais alguma coisa. Uma prova. Algum comentário, recado ou, mais idealmente, um convite, um chamado, uma declaração expressa que consumisse quaisquer possibilidades de dúvida. Nada. Porque as tuas palavras não são para mim. E me ponho a imaginar onde, com quem, para quem são as tuas palavras agora, enquanto que eu estou aqui, revolvendo o nada. Na verdade, bem na verdade, eu estou carente de ti. De qualquer migalha que seja. E qualquer declaração boba, sem sentido, descompromissada, serve de desculpa. Porque a afetuosidade está nos meus olhos. Porque eu já estava apaixonada pela ideia de me apaixonar por ti quando comecei a brincar de gato e rato com o que eu sinto. E no fim de tudo isso, eu já estava olhando de dois em dois segundos pro celular, na esperança de que algum contato teu chegasse. Eu simplesmente seguia meu destino de esperante-desejante-imaginante. Sem esperança, sem desejo e sem imaginação que me fizesse pensar que o que eu sentia não era mais do que a ausência de alguém que não é tu nem eu. É de um nós que nunca foi. Mas que levou tanto, tirou tanto, esvaziou tanto, que nenhum sentimento parece ser capaz de suprir, atender, preencher o verdadeiro buraco de uma existência vazia e sem sentido.

0

o cheiro do ralo

eles estudam os desviantes,
julgam os desviantes,
discriminam os desviantes,
mas sempre com um risinho
(misto de sarcasmo, idiotia e dissimulação)
nos lábios.
é que enquanto assim agem
também desviam,
mas sempre por uma boa causa.
o desvio dos bons,
para salvar os maus, feios e loucos justifica-se
(e não raro pela necessidade).
sente o cheiro de podre?
não, não.
não é do ralo.
é do projeto.
0

Uma cidade, país, lugarejo
Uma igualdade, um sossego e um beijo
(Giba Giba)

Gotham City,
uma cidade de mistérios,
que não existe no mapa.
uma cidade de enganos,
que nunca me escapa.

Ela me agrada quando os dias estão cinzas.
E quando chove.
Mas, definitivamente,
Eu a amo com todas as minhas forças quando estou longe...
0

sempre ele...

"Sofia, os dias passam, mas nenhum homem esquece a mulher que verdadeiramente gostou dele, ou então não merece o nome de homem."
Machado de Assis, Quincas Borba - Cap CLIII.
0
0

Capacho

Tem gente que nasceu com vocação para pano de chão.
Pode ser sujo, arrastado, esfregado contra qualquer superfície, pisoteado.
Até gosta.
Servil, permanece ali, à disposição.
Os sentimentais dirão que é amor.
Os psicanalistas diagnosticarão masoquismo.
Os mais cínicos buscarão as razões em algum interesse subjacente.
Os religiosos talvez cogitem falta de autoestima ou alguma desrazão de viver.
Os intelectuais certamente dirão tratar-se da mais pura estupidez.
A mim?
Parece apenas patético.
Lamentável.

 
Copyright © oblogueobliquo