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catarse

“A gente começa a salvar a humanidade
salvando uma pessoa de cada vez;
todo o resto é delírio romântico ou político.”
Charles Bukowski

Eu nunca quis ser mártir.
Não sou exemplo pra coisa nenhuma.
Não quero discípulos nem seguidores.
E eu nunca quis salvar o mundo.
Mesmo porque questiono
Se existe alguma coisa sob o Sol que deva ser salva.
O seu problema é problema seu.
Porque eu não tenho problemas na minha vida.
Eu não preciso de ajuda.
Sobretudo quando eu olho o meu entorno.
Quando olho à minha volta. 
E se eu não sou parte do problema, sou parte da solução.
Vejo guri agindo que nem adulto.
Vejo adulto agindo como guri.
Eu não gosto de promotores.
Não gosto de advogados e servidores.
Não gosto de juízes e defensores.
Não gosto de criminosos.
Não gosto de técnicos ou monitores.
São tudo da mesma laia.
Da mesma laia que a minha.
Eu não gosto de fazer audiência.
Não quero fazer sustentação oral.
Não gosto de retirar carga e fazer petição.
Mas meu maior defeito é não saber dizer não.
Não conseguir me enxergar de outra forma
Que não como sendo egoísta pra caralho
Quando não ajudo alguém que poderia ajudar.
Alguém de carne e osso, que enxergo e consigo tocar.
Como se a cada pessoa ajudada retirasse de mim
Um pouco do peso da minha existência.
Do que eu sou e do que eu posso dar.
Quando eu ajudo alguém, na verdade, eu ajudo a mim.
Eu me ajudo a suportar meu próprio egoísmo.
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Sala 109

Este texto foi escrito em 2008. Baseia-se em uma situação que experimentei, envolvendo pessoas que fizeram parte da minha trajetória naquele e neste momento. Talvez (e por esta razão) não haja, atualmente, melhor tradução para as escolhas que fiz...

SALA 109

Gotham City, 24 de agosto. Segunda-feira chuvosa. Mais uma daquelas com chuvinha fina tocada a vento frio que assobia. Parece cortar a pele e gelar os ossos. Olho pro lado, Pietra dorme enrolada, sem quaisquer preocupações com o que acontece lá fora. Certa ela. E sortuda ainda, já que poderá continuar neste embrólio com as cobertas, enquanto que a mim (o destino é mais sarcástico), toca ir trabalhar.

Com toda a minha movimentação errática, acompanhada pelo pensamento reiterado de transgredir todas as normas laborais e permanecer ali, ela acorda, se espreguiça e me olha com um arzinho, misto de pena e enfado, por perturbá-la durante o sono matinal, ao revolver os cobertores para sair da cama. Tudo bem. É a ordem das coisas, penso, tentando me consolar ao entrar no banho.

A chuva persiste. Com mais vento, é verdade. Mas a possibilidade de parar de chover ao longo do dia era considerável também. O caminho para o trabalho estava como em todos os dias de chuva. Trânsito. Sinais. Motoristas mal-educados. E desembaçador do vidro do carro inoperante.

No escritório, tudo exatamente igual à segunda-feira passada. O mundo seguia tentando acabar entre os prazos fatais e o chefe continuava fazendo de tudo para que isso não acontecesse. À custa da minha síndrome de proletária e senso de responsabilidade, combinada com doses cavalares de café com pão de queijo do Zaffari. Pilhas de papéis sobre a mesa, computador trancando de tempo em tempo e motoboys entrando e saindo, espargindo no ar umas gotículas de chuva entremeadas com cheiro de óleo e borracha das roupas de chuva molhadas. Penso na minha preta, dormindo tranquila na cama. E passa o dia.

Final de expediente, não sem atividades extras para salvar o mundo do colapso derradeiro. Mais alguns minutos e adeus intervalo da aula. Ao menos a chuva deu uma trégua. E o vento já está bem mais ameno. Entrei no carro, liguei o rádio e peguei a Bento. Rumo ao campus do vale. Aula de antropologia de gênero e parentesco. Textos sobre família (e a minha, lá em casa, muito bem, obrigada).

Sala 109, no fundão do corredor. Entrei e Leonor já esperava o resto do pessoal chegar para começar. Ela com o mesmo jeitão de sempre, meio escabelada, mas sorridente. Espécie de estilo antropológico é o andar desgrenhado em alguma medida. Há quem reclame dela, achando-a meio mau humorada ou grosseira. Não é meu caso. Sempre nos demos bem. Na verdade, gosto dela. Pela paixão profissional que demonstra e pela forma como dá aulas. Por pior que seja o assunto, ela faz com que a antropologia pareça a melhor carreira que alguém possa almejar (ao menos alguém como eu), em detrimento de todas as maledicências que lhe imputam. Sobretudo as de caráter econômico.

Sala cheia, uns 30 alunos. Me sento lá no fundo, última cadeira. Leonor inicia sua explanação sobre as modificações sociais, o voto das mulheres e se vai. Caminha lentamente ao longo do quadro, faz alguns apontamentos. Intercala uns comentários, gracejos ou provocações aos alunos que ela lembra o nome. Tem um falar calmo, entre so(risos) e gestos lentos. Uns alunos perguntam. Outros anotam.

Percebo uma movimentação próxima a uma cadeira lá na frente. Uma menina estende o braço como que para pegar algo que tivesse caído ou que estivesse próximo ao chão. Me inclino para frente para ver o que era. Uma gata. De um preto liso e sedoso, salpicada de dourado brilhante. Para ficar assim, só poderia ter sido vitimada por uma brincadeira do acaso, que lhe assoprou um fino pó semelhante a ouro sobre o corpo. Olhos verdes. Segura de si. Esguia e altiva. Sentada ao lado da fileira de cadeiras. Primeira da fila.

Atentamente, ouvia e acompanhava a movimentação de Leonor. Perfeitamente à vontade. Olhava para ela como se estivesse analisando a explicação, percebendo o que havia por trás dos conceitos naturalizados de família e parentesco. Em alguns momentos, ela se distraía. Perdia uma parte da explicação e olhava para os alunos em volta. Um barulho e ela virava para ver o que era, junto com outros dispersos. Mas voltava às explicações. Até um outro momento, onde alguém fizesse qualquer espécie de sinal com as mãos e ela ia ver o que se tratava. Calmamente, circulava por entre as cadeiras, socializava entre alguns e voltava para o seu lugar lá para frente.

Um aluno saiu da sala para atender o celular e ela o acompanhou. Dar um tempo. Arejar as ideias no corredor. Uns minutos depois, uma menina atrasada entrou, com quem ela voltou novamente. Seguia à vontade na sua condição de gata livre pensadora. Se a antropologia está chata, na rua está pior, devia ter pensado. Mas tinha dúvidas. E em mais de um momento. Enquanto Leonor falava encostada na mesa, ela sentou ao lado da porta. Olhava para a porta e olhava para Leonor. Era claro. Esperou, esperou. E Nada. Lavou a pata, lambeu, passou na cara. Leonor seguia falando sobre mapas de parentesco e o modelo de família brasileira de Freyre. Ela ouvia tudo quieta, sentada, próxima à porta fechada. Olhava para Leonor. E ela seguia juntando uma ponta na outra, costurando o argumento e andando lentamente. Aproximou-se da gata e ela da porta. Abriu gentilmente para ela sair. Falando e sorrindo. Continuou com as reflexões até o intervalo.

Saí para buscar um café e a movimentação do corredor era grande. Alunos conversando em pequenos grupos, rindo e contando os fatos do final de semana. A gata sumira entre os passantes. Fim do intervalo e a aula recomeçava. Todos começaram a voltar para os seus lugares. A porta aberta e o movimento de alunos no corredor.

Um colega fez um apontamento que parecia interminável. Eu me distraí da metade pro final. A objetividade e o poder de síntese do raciocínio é uma dádiva, pensei. Coisa para poucos. Quando olhei para o lado, vi a gata. Deixando-se acariciar por um aluno próximo a mim. Como todos aqueles que sempre sabem exatamente o que querem e para onde vão, ela se permitia entregar-se às carícias dos desconhecidos sem qualquer pudor, quando o assunto parecia meio tedioso. Ela estava certa. Fiquei acompanhando o trajeto que ela percorria entre as cadeiras, esperando que ela viesse em minha direção. Rabo em pé, levemente arqueado na ponta. Ao chegar mais próxima, estendi o braço. Me estiquei o quanto pude para tocar-lhe a cabeça. Ela a empurrou contra a minha mão em um movimento que parecia desenhar ondas no ar. Sussurrava baixinho “vem cá, vem cá comigo” e ela, soberbamente, avaliava o meu pedido suplicante, se digno de deferência. Todos mantinham-se atentos à fala de Leonor, enquanto eu já me perdera há tempos das questões familiares... Insistente, já dava leves batidas na lateral da coxa, tentando convencê-la a chegar mais perto de mim.

Ela veio em minha direção mas subitamente parou. Como quem lembra de ter esquecido algo, parecia absorta em pensamentos. Calculava. Em segundos, preparou-se e deu um salto. Acomodou-se no meu colo, esfregando a cabeça na minha mão para que eu a acariciasse. Assim o fiz, surpresa com aquela iniciativa. Ronronava e, em sua expressão de deleite, podia crer que sorria. Pretendia afagar-lhe o dorso e a cara; não propriamente servir-lhe de cama. Se assim quis, não me opus. Tinha o corpo todo salpicado de ouro. Os dedinhos das patas, uns pretos, outros róseos, reproduziam sua singularidade. Abria-os no ar e fechava-os, como se estivesse massageando uma nuvem.

Lavou a cara e aninhou-se. Deitada sobre o meu colo dormiu. E sonhou. De certo perseguia (ou fugia) de qualquer um dos membros da família patriarcal brasileira de Leonor. Sacudia as patas imersa em um sono profundo, fazendo com que a “ficção fundamentada” em questão fosse esta cena e não o modelo de família moderna. Assim fiquei até o final da aula. Sequer podia me mexer na cadeira. Escrevia no caderno meio atravessado, com a outra mão amparando seu corpo sobre minhas pernas juntas. Os colegas próximos olhavam e lançavam um sorriso cúmplice, solidário. Leonor seguia com a aula lá na frente. E eu já pensava no final do período. Pensava na Preta, lá em casa, e na forma como a gata dormia.

Ao final da aula, esperei o máximo que pude para acordá-la. Recolhi as minhas coisas e acordei-a, colocando-a no chão. Ela se espreguiçou, me olhou, sentou-se e começou a lamber a pata, passando na cara. Lambeu a barriga e coçou a orelha. Indiferente à movimentação dos alunos, ao arrastar de cadeiras. Segui andando com os demais colegas que saiam. Não queria me despedir. E não olhei para trás.

No estacionamento encontrei Leonor. Perguntei a ela se as aulas seriam sempre naquela sala. “Sim, eu gosto desta sala. Pedi para me mudassem para a sala da gata” respondeu. Tomamos a direção dos nossos carros. Me despedi e entrei no meu. Liguei o rádio e fui embora. Admirando um pouco mais Leonor. Estava claro para mim que ela gosta de gatos. E pela alteridade em prática e respeito mútuo entre elas, poderia afirmar que, assim como aconteceu comigo, Leonor convenceu a gata de que ser antropólogo é a melhor escolha que se pode desejar fazer...
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lembranças

tocou a campainha e sacudia o corpo diante da porta para espantar o frio. mãos nos bolsos, a cara enterrada na gola da jaqueta. tinha a ponta do nariz vermelho, colorindo o rosto pálido e cansado. ela demorou para abrir a porta. não avisara que viria. na verdade não saiu para isso. mas não pode deixar de ir vê-la depois de ouvir a música “dela” no rádio. ela abriu a porta e pulou no pescoço dele. ele envolveu aquele corpo pequeno no seu abraço. inebriou-se com o cheiro dela. ela sorriu um sorriso largo. ficava mais linda em pijamas. tirou do bolso da jaqueta uma caixinha de remédios e alcançou-lhe. o antialérgico dela. - tu esqueceu lá em casa. ia te ligar pra te avisar, mas resolvi trazer duma vez. pensei que tu pudesse tá precisando dele. o tempo anda ruim. disse entre sorrisos vacilantes. ela sorria. talvez agora o sorriso tivesse se espalhado por todo o rosto e alcançava o nariz, os olhos, as orelhas. tudo nela era sorriso. - quer entrar? tá frio aqui fora. tô tomando um vinho. entraram. beberam o vinho. conversaram amenidades. ele percebia que ela tinha o corpo mole pelo vinho e em alguns momentos apoiava-se na discussão para não cair no assunto que realmente interessava naquele momento. fazia alguns comentários vagos, mas nada que pudesse comprometê-la ou sobre os quais pudesse ser responsabilizada no futuro. ele mantinha-se na sua pose de homem-persona, apesar de um pouco mais relaxado com o fim da garrafa. carinhoso, espirituoso, mas centrado. nenhum movimento que fugisse do eixo onde gravitam as terminologias respeitosas e respeitáveis dos homens que querem impressionar uma mulher por sua educação. entre as palavras soltas, o silêncio se impunha inconvenientemente em várias ocasiões. nada que não justificasse o acendimento de mais um cigarro. assim ficaram por umas horas. era como a cena de um filme, devidamente marcada e cujo final era conhecido de ambos. - tá ficando tarde. é melhor eu ir. ele disse com um ar reticente. olhava para ela. e a tinha linda e sorridente diante de si. quase uma afronta ao seu desejo de pegá-la e beijá-la até que, enfim, o mundo acabasse lá fora e nada mais importasse além disso. mas não o fez. foi embora.
ao chegar em casa, percebeu que estava sem a jaqueta.
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diálogos entre o belo e a fera...

o mistério é tudo! e o teu é tão lindo. mas, por favor, me deixa entender o que subsiste por trás do hermetismo da tua linguagem?
 
 
Índios Kayapó fotografados por Nair Benedict
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.09.08.2008.


minha poesia se perdeu
entre folhas secas
e chuvisqueiros repentinos
os olhos que me inspiravam já não os vejo
eu os perdi
entre os transeuntes apressados
em meio ao nada e
entre tudo que passa

como superar o vazio
de não os ver?
como reencontrá-los
e fazê-los crer
que eu realmente
os necessitava ter?
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Não sou mulher de plástico, não.
dessas progressivamente escovada,
lipoesculpida e com sorriso armado de fêmea fatal.
Sou fatalmente construída de nove partes de carne
Com olheiras, dores e mau humores.
Mas também de sorrisos sinceramente escancarados e
Beijos afetuosamente distribuídos.
Tenho rugas testemunhas do meu tempo bem vivido
E nariz empinado pela mãe que me pariu!
Sou mulher o bastante para conduzir a minha vida
E só a mim devo explicações ou obediência.
Não tenho senhores, servos ou seguidores.
Só respeito gente digna de respeito e sem rancores.
Partilho meu tempo com homem que seja seguro
O bastante para saber o que fazer com ele.
Sou mulher de verdades, que pensa, chora, sente e ri.
Tudo em grande quantidade e na hora que bem entender.
Quem não tem força suficiente para lidar com isso
Que busque uma mulher de plástico
Em qualquer prateleira dos mercados da vida
Onde qualquer coisa se pode comprar
Mas que não venha depois se queixar
Que a vida é sem graça, cansativa ou pouco divertida.
Porque viver de verdade é para poucos e
Cada um escolhe aquilo que consegue suportar...
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Disfarces, passagens secretas e outros subterfúgios...

Ilustra: Brandt Peters

“O medo é a medida da indecisão.” (Lenine)

Para o menino que vive em *Tóquio*.

Ela criava as mais variadas explicações para entender o que acontecera. Por mais inteligente, sagaz e lógica que fosse, poderia passar a vida inteira tentando entender os sentimentos dele, sob suas ternas feições. E ele continuaria sendo um mistério irresolúvel para ela. Era praticamente um enigma ambulante!
Não percebia nenhuma paixão fulminante e, ademais, tudo parecia revestir-se de uma certa inevitabilidade, uma espécie de fatalidade na relação deles. Tinha a impressão de que, por entre suas cortinas de fumaça, entre suas reações indiferentes e impassíveis, havia algum interesse.
No entanto, esse pouco interesse se lhe afigurava como uma armadilha. Colocava-lhe certas ideias na cabeça e ela tinha medo de si com ideias na cabeça. Sabia que não há vítimas em relacionamentos. Que somos apenas vítimas de nós mesmos.
E continuava com a nítida sensação de que havia muito pouco a fazer para seduzi-lo. Não havia como manipular seus sentimentos. Ele era mestre nesses jogos e entrava em todos eles para ganhar. Era tudo ou nada. Ela pagou para ver e, naquele momento, sequer sabia onde estava...

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judicância headbanger II

Terça à tarde. Sol ameno e vento fresco em Gwaybah City.
Lugar de pessoas simpáticas e solícitas.
Olhando a longa avenida que cruza o centro da cidade, de longe avista-se um alto prédio quadrado e cinza que emerge de um grande campo verde ermo. De perto, vê-se miúdas flores amarelas nascidas entre o gramado. É a casa do pai. Ao aproximar-se, é possível ver, ao lado direito (de quem chega) e pouco afastado, um outro prédio igualmente quadrado e cinza, porém um pouco menor, com letras douradas brilhantes. A casa do primogênito.
Aquela que pede bate à porta do pai, com vestes de pessoa comum. Quer ler um livro da paz social.
Antes de entregar o livro de capa rosa, a servidora afirma simpática:
- Para levá-lo para cópias tu tens que deixar tua carteirinha de estagiária ou tua identidade...
- Ah, ok. Respondeu polidamente, retirando da bolsa um cartão profissional.
[olhar de soslaio de cabeça baixa, seguido da entrega do livro, em constrangido silêncio].
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da série: coisas que o velho Marx no explica

Diálogo entre duas amigas...
- e aí, guria! ceva naquele bar que te falei, sexta?
- bah, no rola. tenho aula sexta de noite. dureza né?
- dureza foi acabar a noite no motel ontem e o querido pagar no banricompras...
- ah!
...- pra 30 dias...
- ... sério?
- uhum.
- ... mas valeu pelo menos?
- valeu, valeu (sorrisinho maroto).
- tá vendo? honrou a classe: pobre e digno.
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das confusões...

- Tu parece uma bonequinha sabia? Te olhando assim, parece uma guriazinha...
- ...
- Mas aí é só tu começar com estas tuas teorias aí, eu já não sei mais nada...
- Como assim? Que papo é esse?
- Tu sempre cria uma confusão, já reparou? Na metade do tempo tu parece uma boneca, toda meiga. Coisa mais linda. Aí do nada, qualquer coisa que eu falo, sei lá, aí tu já começa a criar um caso, uma baita confusão e vira uma... uma.. insolente... Me deixa confuso pra caralho.
- Bom, as vezes eu só tô querendo debater o assunto, conversar, saca? Entender porque te deixo confuso. Mas e aí, não entendi onde está o problema? Aliás, me parece que o problema não é meu na verdade, mas teu, não?
- Viu, ó? Vai começar...
- Não, não, não, meu bem. O único problema que eu vejo nisso tudo é que tu quer me culpar pela tua incapacidade de lidar comigo e com a tua confusão interna. Mas até aí nada, né? A confusa aqui sou eu. Não é?
- Começou...

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SETE VIDAS

Terça-feira de sol em Gotham City. Raridade depois de algumas semanas de chuva. Uma luminosidade amena e um vento fresco compunham o dia e tornavam as coisas mais fáceis para quem precisava deslocar-se pelo centro da cidade. Era início da tarde e eu vinha do mercado público em direção ao escritório, na rua da ladeira. Caminhava a passos relativamente rápidos e firmes pelo local onde sempre há hordas de pombas, transeuntes apressados e um grupo de ciganas que oferecem a leitura da sorte por uns trocados. Apesar deles, eu não me importo. É sempre assim. Ao passar pelo paço municipal, percebi, no momento exato em que olhei pra ela, que uma cigana me olhava. Cruzamos os olhares, estabelecemos um contato. “Putz, lá vem”, pensei. Ela vinha na minha direção dizendo “moça, moça, deixa eu te falar!”,“nem vem, tô com pressa” eu disse com cara de poucos amigos. Mas ela seguia caminhando ao meu lado, apressando o passo para acompanhar o meu. Eu, com aquele gesto rápido, antipático e preconceituoso, apertei a bolsa sobre o braço e fingia ignorar a presença da mulher que caminhava ao meu lado. Ela seguia andando junto a mim quando proferiu sua primeira afirmação: “tu já conheceu teu marido”, “não te perguntei nada”, eu disparei impulsivamente. “E ele já tá te cercando, linda”, “eu não quero saber de coisa que não te perguntei, sai fora”, devolvi rispidamente e apressei ainda mais o passo. Alguns metros mais, eu cruzaria a rua, se o movimento de carros ou a sinaleira permitisse. Tive de parar, esperando a sinaleira fechar. Três ou quatro passos antes, ela parara, com as mãos na cintura. “Não precisa ter pressa, ele é teu marido por sete vidas”, ela complementou, nas minhas costas, com a maior naturalidade do mundo. “Era só o que me faltava”, balbuciei indignada. No restante do caminho, pensei nas possibilidades que se me apresentam e não via nenhuma delas como passível de enquadrar-se na afirmação da cigana. Além disso, se esta fosse mesmo a minha sina, não posso negar a minha frustração ao constatar o quão sem criatividade é o destino. Ou quão transgressora eu fui (ou sou) na minha existência quase-felina. Casar-se sete vezes (ou, pior, em sete vidas!?!) com a mesma pessoa - quando poderia variar uma ou duas vezes, ao menos - é realmente um castigo. E para ambos, talvez...

Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!
(Non, Je Ne regrette Rien - Édith Piaf)

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si, soy yo…
y la voz de mi pensamiento...
mis pensamientos...
pensamientos del corazón.



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Pelo fim da ficção eu me mantenho na alucinação da realidade!
Narciso não atingiu a categoria de mito...
Ele sequer teve um blog!
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a pegadinha mais bonita da cidade (ou isso não é uma história de amor)

viagem marcada há meses para o congresso mais bonito da cidade.
1° dia na universidade mais bonita da cidade. tudo corria bem. intervalo das atividades e ela vê, no corredor, a pessoa mais bonita da cidade, “à serviço” no local. aquele tipo de se pensar “é meu tipo” e de se ter vontade de olhar até secar os olhos porque (ao menos) olhar um cara bonito é sempre prazeroso. (horas mais tarde, esta tese da beleza admirável foi confirmada com sua amiga que também o percebera com admiração). enfim, ela admirou despercebidamente a beleza do cara e não pode evitar aqueles pensamentos desejantes de “ah, se fosse para mim... o que eu poderia fazer com um desses...” e o dia transcorreu. naquela noite ela saiu para beber várias cervejas com os amigos e não viu pessoa mais bonita na cidade que aquele cara.
2° dia de manhã e ela está assistindo uma mesa redonda do congresso com a ressaca mais bonita da cidade. alguns velhos conhecidos discutindo os velhos temas discutíveis. ela tentando manter-se interessada, acordada e pensante. mas, bem, ela sempre vaga sua mente e percorre o tempo e o espaço, procurando outros estímulos. e o destino, quando quer provocar, capricha. justo ela, que estava insignificantemente sentada no fundo da sala, ao levantar os olhos do caderno de notas, com desejos de saída da sala, cruza, de relance, os seus olhos, com um par de olhos que a olha desde o outro canto da sala. eis que o cara mais bonito da cidade estava sentado ali, disfarçadamente entre tantos tipos comuns, e conectou seu belo par de olhos com os dela. e de tal forma direta e incisiva que seu único reflexo (após o sobressalto), foi de desviar o olhar do dele. obviamente que a idéia inicial dela era a de que ele olhava para outra pessoa. mas não. até porque houve um encontro direto entre seus olhares. na melhor das hipóteses, passou a crer que a situação tivesse ocorrido de maneira acidental ou, pelo menos, circunstancial. mas isso também foi descartado quando ela percebeu que, mesmo desviando o olhar, quando voltava a encará-lo encontrava o olhar dele em si, fixo, implacável. neste momento ela teve a dimensão exata de como é “sentir-se arrepiada” por um olhar como certa feita quis dizer Tom Jobim. uma mistura de estado de graça, ceticismo, desejo e incredulidade tomaram conta dela e fizeram com que nem som, nem ar, nem ressaca, nem velhos conhecidos com suas velhas discussões tivessem importância. por mais que tentasse (e quisesse) já não conseguia mais desviar o seu olhar do cara mais bonito da cidade. e assim ficaram ao longo de toda a manhã quando, na saída, sem saber exatamente o que fazer, se perdeu nos corredores e o perdeu de vista. sem mais revê-lo passou a tarde, entre cervejas, risadas e pensamentos furtivos. final do dia, uma festa de confraternização estava programada. mas a guria mais responsável da cidade entendeu por bem não participar, pois além de estar morta, no dia seguinte tinha de apresentar o trabalho mais bonito da cidade. depois de mais algumas cervejas, voltou para o hotel. seus amigos, no entanto, foram e voltaram às 4h da manhã. disseram que o viram por lá, numa rápida aparição solitária. aí ela percebeu que tinha cometido a bobagem mais bonita da cidade ao preferir o trabalho à diversão.
3° dia e ela foi para a palestra imperdível da orientadora com a fala mais bonita da cidade. ainda de ressaca (agora moral), assistia tudo com a atenção focada nos palestrantes. acabadas as exposições, abriu-se espaço para perguntas. do fundo da sala ouviu-se o sotaque carregado da voz de um homem, apresentando-se e compondo um questionamento sobre seu tema de pesquisa. ao virar-se para olhá-lo, a surpresa: novamente a presença arrebatadora do cara mais bonito da cidade acompanhando a mesa onde ela estava. e novamente ela não teve reação alguma para ir falar com ele ao final das palestras. poderia usar como desculpa o tema de pesquisa dele (que conhecia bem) e as referências do seu orientador (que o estudara muito), mas não. sentia-se confusa sobre o que fazer com relação àquela pessoa que a olhava com aquele par de olhos desconcertantes. presença de espírito zero. deixou passar a segunda chance mais bonita da cidade de ir falar com o cara que, no dia anterior, lhe havia comido com os olhos enquanto ela não tomou uma atitude (qualquer uma que não fosse fingir que nada estivesse acontecendo, como fez). foi almoçar e seguiu ansiosa para a apresentação do seu trabalho, distante dali. no caminho, pensava que tudo poderia ser uma bobagem, uma troca de olhares sem qualquer pretensão. ou até mesmo um grande mau entendido de sua parte. justificava-se pensando ser tão improvável uma mulher comum chamar a atenção de um homem tão sexualmente atraente que preferiu não arriscar... em poucas horas estaria voltando para casa e tudo seria esquecido. mas não podia deixar de pensar que, por não ser mais espirituosa, perdia a oportunidade mais bonita da cidade de ter um relacionamento fugaz com um lindo desconhecido. apresentado o trabalho, ao final do dia, voltou para o hotel. jantou, fez as malas e seguiu com seus amigos em direção à parada do ônibus que levava ao aeroporto. ela carregava sua mala mais a frente dos demais, na companhia de uma amiga quando, de repente, a uma quadra do mercado mais conhecido da cidade, ouviu a amiga dizer: “olha só quem está vindo ali”. ela levantou os olhos e tinha diante dela, a alguns metros de distância, vindo na direção oposta, o homem mais bonito da cidade, caminhando lentamente acompanhado por seu cigarro. absolutamente surpreendida pelo ironia do destino, ela novamente não sabia fazer outra coisa que não olhá-lo passar por eles, com o sangue gelado correndo nas veias. ele seguia andando e olhando para ela com os mesmos olhos do dia anterior. ela o seguia com os mesmos olhos arredios de antes. seguia caminhando e arrastando a mala. diminuía o passo e virava para olhá-lo. ele fazia a mesma coisa no sentido contrário. por um instante, ela parou e novamente pensou naquilo que acontecia. lentamente, deixou a mala no chão. e ele parado, já no início da outra quadra, olhando para ela. ela lançou um olhar vacilante e cúmplice para a amiga. e caminhou lentamente na direção dele. ele permanecia parado, fumando e olhando fixamente para ela. ela aproximou-se dele e, sem sequer cumprimentar-lhe ou perguntar-lhe o nome, tomou-lhe um beijo de despedida. ele não hesitou ou resistiu. a trouxe para junto de si com um largo abraço. beijaram-se como os velhos apaixonados nos grandes beijos de despedida. ao abrir os olhos, tinha os olhos dele nos seus. mas agora estavam próximos e pareciam queimar-lhe a retina. apenas sorriram. ela lhe deu as costas e seguiu andando ao encontro de seus amigos que, à distância, observavam atônitos. na metade da quadra virou-se para vê-lo e ele continuava parado, acendendo outro cigarro e olhando para ela. ao pegar sua mala, ela acenou sorrindo com o braço quase estendido, como quem tentasse alcançá-lo. ele respondeu ao seu aceno ainda parado no meio da calçada. seguiu andando e virava para olhá-la, deixando para trás apenas as baforadas do cigarro. ela continuou andando, certa de que, no terceiro ato do destino, prot/agonizara a despedida mais bonita da cidade...

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Na minha visita à Paris, há poucos mais de 1 ano, um lugar não foi objeto de concessão. Eu poderia não entrar no Louvre, no Panthéon de Paris, na torre Eiffel ou não passar pelo College de France, pela Champs Élysées e pelo Moulin Rouge. Saí para Paris com uma destinação certa: Cimetière du Père Lachaise.

Numa manhã primaveril, entre corvos crocitando, contei com a gentileza de um funcionário do cemitério que, ao me ver com o mapa nas mãos verificando as indicações, supôs quem eu estava procurando... A alguns passos de mim, jazia ali o homem mais fascinante que já pisou sobre a Terra.
E eu, que não vivi o suficiente para vê-lo vivo, segui Paris afora me sentindo mais saudosa de sua presença...
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13 de Novembro

Ao mesmo Deus que ensina a prazo
Ao mais esperto e ao mais otário
Que o amor na prática é sempre ao contrário
Ah, pra que chorar
A vida é bela e cruel, despida
Tão desprevenida e exata
Que um dia acaba
(Cazuza)


Eu acordei pensando que, 2 anos atrás, neste dia, eu estava levantando 2 horas mais cedo que o horário normal para te preparar o café da manhã. E as duas torradas, com margarina nos dois pães, o suco de laranja e o café solúvel com leite tinham um ar de nobreza que beirava o poético.
A brancura rósea da tua pele entre os lençóis, salpicada pelas várias pintas esparsas e iluminada por um feixe de luz solar que passava por entre as persianas, te dava um ar pueril, que era reforçado pelo teu semblante preguiçoso, refém do sono da manhã.
            Eu parei diante de ti, 3 passos antes da cama, com a bandeja nas mãos. De todas as memórias daquela manhã, a que (re)surge mais nítida é o teu sorriso de satisfação, ao me ver diante de ti, segurando a bandeja, camiseta dos rolamentos Dana e cabelo preso com uma caneta bic.
            O cheiro do café e das torradas. O meu bom dia cheio de ternura, com aquele sorrisinho tímido bobo e o teu espreguiçar-se com um pequeno gemido, me estendendo os braços com carinho. Eu indo insegura na tua direção segurando a bandeja e a tua reação de pegá-la e colocá-la sobre o criado-mudo me fizeram ingenuamente pensar que algo não estava do teu agrado. E a tua resposta “eu vou TE comer” para o meu frustrado “tu não vai comer?” me fizeram entender que o carinho pelo dia especial era mais complexo, mais cúmplice e mais intenso.
            O café da manhã, feito de café e torradas frios, entremeados com beijos e afagos, após mais uma trepada ao amanhecer era muito mais do que um café da manhã na cama, com um bom dia sem graça seguido de um “Feliz Aniversário”. No final das contas, muito pouco acabou sendo diferente dos demais dias do ano, como na realidade o aniversário é.
            Me dei conta de que tu realmente levava à sério este lance de lembrar (e comemorar) aniversário e o quanto era (e é?!?) importante para ti que isso fosse de alguma forma celebrado. Um simples cartão era causa de uma comoção social. “Como dar um presente sem cartão?” dizia tu. Ainda que fosse um cartãozinho de visitas, pequeno, apenas assinado com os dizeres “Parabéns” ou “Feliz Aniversário”. Significava que, antes de mais nada, a pessoa fora lembrada, o seu dia estava salvo.
E todos os anos eu tomava este cuidado. Para além da lembrança, lembrar de diferentes maneiras, mesmo que eu lembrasse sempre da mesma forma: tu dormindo, naquele emaranhando de cobertas sob aquele raio de sol que passava pela persiana, enquanto eu, com a cabeça meio zonza de ressaca, caminhava pé por pé para a cozinha.
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discurso mono

Eis que nessa tarde chuvosa em Gotham, tive a oportunidade de estabelecer contato com uma ilustre membro de uma certa instituição pública estadual, cuja designação de seus integrantes faz alusão à justiça. Distinta senhora, em certa altura de sua fala, relata sua experiência de estranhamento, ante os dignitários de seus serviços [no caso “outras”], distintas de si, em um espaço pensado para tais questões.
Não foi sem surpresa que eu recebi seu comentário: “Fiquei impactada com as nossas mulheres aqui em ‘Gotham’. Elas são quase bichos. É uma carência de tudo: de cultura, de educação, de autoestima, de conhecimento!!!”
Definitivamente nestas horas, tenho certeza de que minha atividade laboral, antes de qualquer coisa, testa constantemente a minha capacidade de exercer a alteridade frente aos outros, sobretudo àqueles que tenho por hábito ter/querer ter bem distantes de mim.
Assim sendo, não posso deixar de pensar nesse vídeo.
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-- Chupa! Chupa, vagabunda!
E quando ele gritou pela segunda vez só se ouviu um golpe seco, seguido de um gemido.
Quando levantei os olhos e me deparei com a expressão nojenta que ele trazia na cara após ter dito aquilo, meu único reflexo foi passar a mão pela coisa mais próxima que havia e sentar-lhe na testa.
Um cinzeiro redondo, de cristal, que ficava na mesa de centro.
Uma risada metálica ecoou na casa toda.
Ali tive certeza que ele tinha se apaixonado por mim.
E que eu não me livraria dele tão cedo.

Keith, Tina e David flagrados num momento meigo :)
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já tem uns dias que voltei a fumar. agora, de maneira passiva.
e nas palavras de Joaquín Sabina, "los fumadores pasivos son unos cabrones que fuman sin pagar". gênio.

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A ociosa...










Ela tem dois empregos
Faz 7 disciplinas
Um curso de idiomas
Mais um curso de extensão.
Participa de grupos de pesquisa e
Escreve três artigos simultaneamente há meses
Mas não termina nenhum.
Não atende o celular (porque seguidamente o perde)
É negligente com amigos,
Destrata sua vida social
E parece esnobar aqueles que lhe querem mais.
Mas quem disse que lhe falta tempo
Para sonhar com o improvável?
Ter desejos de ventos frescos em dias (a)menos?
Esperar por um cara desengonçado que está sempre atrasado?
Cair em pedidos chorosos de amigos não tão amigos e
Imaginar que tudo isso é sonho, é bom e passa rápido?
Sim, passa rápido.
O ano quase termina já...
E ela já está pensando
Em quais aventuras meter-se nos próximos meses...
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“Um amor mal resolvido do passado pode voltar a mexer com seu coração”
Dizia o horóscopo no jornal.
Eu esperei quase 2 horas sentada no banco da praça
Que fica em frente ao posto de gasolina.
Pensando que o veria antes que chegasse até mim
Porque obviamente ele estacionaria no posto.
Mas não.
Ele não fez isso.
Surgiu subitamente de qualquer direção para a qual eu não olhava
E, como de costume, me surpreendeu no ordinário da vida.
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judicância headbanger

Sexta-feira, no foro central de Gotham. No cartório de uma Vara qualquer, uma advogada e dois assistentes estudantes de direito, todos brancos e vestidos como pessoas comuns, chegam para “juntar subs” e “retirar em carga” três processos, para fazer cópias reprográficas. A funcionária pública que os atende esboça um simpático sorrisinho, e afirma:
“Ah, mas vocês não vão poder nem olhar esses processos, pois eu só posso entregá-los para um advogado”.
A advogada viu-se, então, na necessidade de exercer o discurso de autoridade do seu pseudo doutoramento, devolvendo com o mesmo sorriso simpático a afirmação:
“Ah mas então a gente vai poder olhar os processos sim, porque eu sou advogada”.
Um tanto constrangida, a simpática funcionária disparou aproximadamente 48 vezes o verbete “doutora”, entre risadas desconfortáveis e tentativas de escusar sua negativa de entrega dos autos. Com elogiosos comentários à juventude da “doutora” e a precocidade de sua formação, ela solicitou a carteira da ordem, a fim de “verificar o número de inscrição”, quando na verdade comparava atentamente a foto da carteira com o rosto da “doutora” no balcão. A partir daí todas as frases foram iniciadas ou seguidas com o título “doutora”, anulando-se, pois, a importância do seu prenome. Após a conferência da procuração e preenchimento da guia, a carga dos autos foi feita.
* * *

Mesmo dia, num (distante) foro regional de Gotham. Agora, a advogada está desacompanhada dos dois assistentes e tem como único intento distribuir uma ação. Como há muito tempo não ia naquele foro, achou por bem dirigir-se até o balcão de informações para saber com o funcionário onde ficava a “distribuição”.
- Oi, tudo bem? Tenho que distribuir uma ação. Pode me dizer onde tenho que ir?
- Huum... Tu quer distribuir uma ação?
- Isso.
- É civil ou criminal?
- Cível.
- Ah tá. [Entregando um papel] Daí tu tem que ligar para esse número aqui, nesses horários e pedir para falar com um defensor público.
- Mas eu não preciso de um advogado. Eu sou advogada.
- [Pausa] Ahnn... Tu quer entrar com um processo teu então?
- Aham. - Ah, então é ali naquela porta.
- Ok, obrigada.
* * *

Essas duas situações descrevem as reações provocadas pela minha proposta de exercício de uma “judicância headbanger”, que consiste basicamente em vestir-se como uma pessoa comum, ou seja, fora do padrão de “figurino estereotipado” do que seja uma “doutora”, e tratar as pessoas de maneira respeitosa sem as distinções e afetações jurídicas típicas. Uma maneira de estabelecer uma forma de estranhamento e desconforto (quiçá alguma ruptura mínima) nessa cultura de bacharelismo e de distinção pessoal visual que povoa o mundo jurídico e me parece ridícula e desnecessária.
E vejam que nesse dia eu nem estava usando meu velho all star... :P
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Pílulas da Revolta Cotidiana I

Mês de maio, mês das mães, das noivas e de outras crendices populares iniciou com boas situações da vida (su)real em Gotham. E com peculiaridades tais que me levam a pensar numa “seção” especial para o blog: pílulas da revolta cotidiana seria um bom nome?!?
Bom, inicio aqui uns breves relatos...
Numa segunda-feira qualquer eu fui incumbida, em razão de minhas obrigações profissionais, a comparecer em um evento sobre enfrentamento da violência contra mulheres, no palácio do MP, vulgo forte apache - atribuição, aliás, bem condizente com a postura beligerante dos nobres promotores (de terror) públicos. Pois bem. Na entrada do belo palácio, me deparei com um banner de “boas vindas”, no qual havia a reprodução de uma passagem “Do Contrato Social” de Jean Jacques Rousseau que faz referência à soberania do corpo social, ou seja, da vontade geral, expressa através da lei, em detrimento da vontade individual. E eu, que estava lá para ouvir eles falarem sobre direitos humanos das mulheres, já na entrada, tive certeza de que não havia razão para estar ali...



 
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dos sentidos das palavras...

- Quando eu utilizo uma palavra - disse Humpty Dumpty, em um tom de sarcasmo -, ela significa exatamente o que quero que ela signifique, nem mais, nem menos.
- Mas a questão é - disse Alice - se você tem o direito de fazer as palavras significarem para vocês coisas diferentes do que elas querem dizer para as outras pessoas!...
- A questão é - afirmou Humpty Dumpty - quem é que manda aqui. Só isso.

(Carrol, Lewis. Alice no país do espelho. Capítulo VI)

E quem disse que os livros infantis não têm muito a ensinar?
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II

Quero que se foda a tua comunicação visual de meias verdades
Tuas possibilidades pseudo-estáticas de erro
Diante das minhas tentativas de mácula.
O anúncio de atitudes não soa ameaça
Pelo simples fato de que teu desejo já não as concretiza
E o que te faz corajoso já não é senão tua incapacidade de sê-lo.
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I


Eu vou construir umas outras narrativas de ti.
Que não só as feitas das tuas palavras e dos teus sussurros
Dos teus cheiros e dos teus gestos.
Eu vou contar tuas farsas, teus desejos e teus sorrisos.
Expor tuas mágoas, teus fluidos e tuas indecisões.
Tuas cores e tuas sombras, teu corpo e o que é parte de ti.
E as múltiplas combinações possíveis que eu quiser fazer
Serão de tudo aquilo que tu não é e que eu não vejo.
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"Mas em que bairro Jesus vai ficar? Em que rua Jesus vai morar? Na Santa Cecília ou na Conceição? No Espírito Santo ou na Assunção?" Wander
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Carnaval de março, encerrando o verão.

Dia de sol, chimarrão no parque.
Ruas desertas, caminhada tranquila.
Por do sol, sorvete na Jóia.
Máscaras cariocas, sotaques sociais.

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Adoro tomar ar, acho incrível, vamos tomar ar!

Férias. É a época do ano que eu me permito deixar um pouco a vida alienada dos livros e da vida acadêmica de lado para me inteirar mais do mundo real, da cultura de rua, da sociedade brasileira e da TV. Sim, eu assisto TV. Mas escondida dos meus colegas acadêmicos, claro. Imagina por uma carreira brilhante a perder se descobrirem que assisto TV quando deveria estar lendo algum alemão bem difícil, daqueles que todo mundo lê mas poucos compreendem?!?
E ontem investi alguns minutos da minha noite na novela global das oito/nove, insensata como tudo/todas produzidas até então...
Incrível como, de tempos em tempos, eu paro diante da TV para “dar uma espiadinha” básica (hey, trocaralho de outro programa da TV?!?) e tenho a nítida sensação de que se trata do MESMO folhetim. As mesmas personagens, as mesmas histórias e os mesmos desfechos, mas enfim...
Bom, seguindo na noite de ontem, enquanto degustava minha pizza, eu dei (mais) uma chance para um trecho da novela, uma festa pra lá de chique e badalada. Aliás, adoro festa de novela! E essa aí vale uma tese de doutorado!
E a frase que me abriu os olhos e os ouvidos: “michê, pornô e homem casado, tô fora!” vociferou a garota “vestida para matar”, ante a abordagem do tiozão cinquentão montado na grana sacudido que a assediara e que, segundo ela, tinha um problema: “um sinal vermelho gritando na mão esquerda”...
A mulher caçadora de marido rico solteira reclamava minutos antes ao amigo gay que investiu uma baita grana na “produção” para ir a festa e o máximo que conseguiu foi passar todo o tempo assediando um gay enrustido (um advogado cuja única atividade na vida parece ser trabalhar pro “Grupo” empresarial do tiozão aquele). Na volta pra casa (no subúrbio), choraminga no ombro da mãe ¾ cujo maior presente foi uma TV nova comprada pela garota com a grana do seu último trabalho (leia-se “fotos artísticas”) ¾ o insucesso da noite:
“O que tem de mulher que casa com homem rico e leva uma vida maravilhosa! É só isso que eu quero. Eu não quero roubar, eu não quero matar, eu não quero nada! Eu só quero encontrar um marido que seja legal, solteiro, hetero, que queira casar comigo e que seja rico!”
Já posso dormir tranquila. Enquanto eu estava no incrível mundo dos alienados acadêmicos, as coisas pouco mudaram...

“Se Eva tivesse escrito o Gênesis, como seria a primeira noite de amor do gênero humano? Eva teria começado por esclarecer que não nasceu de nenhuma costela, não conheceu qualquer serpente, não ofereceu maçã a ninguém e tampouco Deus chegou a lhe dizer “parirás com dor e teu marido te dominará”. E que, enfim, todas essas histórias são mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas.”

GALEANO, Eduardo. Ponto de vista/6. IN: De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9ed., Porto Alegre: LP&M, 2007, p.70.
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Ando de poucas palavras mesmo. Incomodada com o calor. Com algumas coisas que (não) acontecem. Inspiração não rima com transpiração. Claridade demais me irrita os olhos e todo o resto. Me cega e me ofusca as ideias. Sem contar essa espécie de “obrigação de ser feliz” no verão, vendida nas propagandas de cerveja e no noticiário de TV, que não me convence. Não adianta. O calor me deprime. Prefiro os dias cinzas. De preferência aqueles de chuva fina, tocada a vento. Para mim, esses sim são dias felizes.

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sobre a cidade...

Entre as minhas andanças pela cidade, essas manifestações me chamaram a atenção pelos sinais de pensamento crítico e reflexivo que emergem, em contraponto à euforia empreendedora generalizada (de alguns setores, frise-se) causada pelo “evento” Copa:



Esta foto foi tirada dia 02/02, mesmo dia em que recebi o folheto. Bem legal a proposta e já dei uma olhada no blog!





Para finalizar, ontem, me deparei com essa outra intervenção no Arroio Dilúvio, entre as avenidas da Azenha e João Pessoa:


Enfim...
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o curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.


JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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