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E fora um ato preciso.
No meio de uma rua deserta. Na madrugada.
Os reflexos das luzes iluminando o asfalto molhado pela chuva fina
Que era jogada pelo vento frio e cortante contra um rosto impávido.
Diante da perplexidade um homem em pé. Rosto suado. Mãos trêmulas.
No lugar certo. No horário exato.

No cruzamento das duas grandes avenidas um carro.
Vidros escuros. Luzes apagadas.
No seu interior, duas silhuetas.
Uma delas ganha a rua
Passos rápidos e ombros encolhidos
Tentando evitar no seu rosto a agressão do tempo.
Olhar fugidio e sorriso sarcástico (ou o sarcasmo estaria no olhar de quem observa?)
Dá a volta no veículo. Olha o entorno. Abre a porta.
Dá passagem ao outro tripulante
Com a cabeça coberta pelo casaco de lã negra. Abraçam-se como que para se proteger da interpérie e dos olhares sedentos de uma felicidade ilícita. Atravessam a rua.

O homem mantém-se imóvel junto ao meio-fio, como a estátua que habita a marquise do prédio em frente.
Comprime os lábios. Cerra os punhos.
Balança a cabeça como que para varrer dos olhos a imagem que vê. Insiste em não crer.
Busca respostas para o inexplicável no inimaginável.

Um casal chega à calçada oposta. Ela descobre a cabeça diante da porta do restaurante, aberta por ele (trazendo o mesmo sorriso nos lábios).
Com a luz do interior do estabelecimento é possível ver o rosto dela.
O seu olhar terno e convidativo (seria realmente o seu olhar terno?)
O homem diante da cena sente um tremor passar-lhe pelo corpo todo. As faces latejarem. Pega do bolso da camisa um papel. Aperta entre o punho cerrado. Olha o relógio.
Leva a mão à cintura. Sente o frio mórbido da pistola. 13 projéteis intactos no pente. Diversas imagens passam por seus olhos em fração de segundo.
Já não sente a chuva cair. Seu corpo fora tomado de um torpor analgésico.
O momento é perfeito.

Um tiro. Seco na noite fria. Um corpo estendido na rua. Nenhuma testemunha.
Dentro do restaurante a mulher tem os olhos mareados
Olhando o anel de noivado
o homem lhe acaricia o rosto com um sorriso (terno?) nos lábios.
Em um das mãos defuntas uma pistola.
Na outra, um esboço rabiscado de poema:
“Desde que tu me deixara, a felicidade alheia me desespera.”
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Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

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A (in)crível maestria da academia (ou Ode ao Fracasso)

O aluno chega na sala atrasado, cheios de papéis soltos presos entre os braços junto à pasta semiaberta. Visivelmente esgotado, mas com certa agitação, entra na fila de alunos diante da mesa do mestre, para receber a avaliação do trabalho entregue na semana anterior, o qual ele passara toda a madrugada escrevendo. Tinha dúvidas acerca de suas construções mentais, se os pontos de “diálogo” que percebera entre os autores estavam corretos e, ainda, se suas reflexões a partir disso faziam sentido.
Ao chegar a sua vez, o professor entrega seu trabalho com um gesto mecânico, sem levantar os olhos da planilha e em total silêncio. Nas folhas, nenhum comentário ou rabisco à caneta. Apenas os caracteres negros de sua impressora que, as vezes, deixa falhas.
Em um misto de curiosidade, ansiedade e dúvidas, de chofre, o aluno pergunta ao professor o que ele havia achado do ensaio, se havia muitos pontos a serem revistos ou reconsiderados.
O mestre, do alto de sua sabedoria, daqueles que não pode perder tempo com bobagens ou ilações prolixas de alunos rasos (eis que reles), afirma com tranquilidade e distanciamento:
"- Teu texto, no geral, tá ok... Não tem muitas coisas para corrigir. Na realidade, eu já o tinha lido, pois tu já havia me entregue ele antes."
A afirmação soou como uma espécie de teste de sanidade. A(s) noite(s) não dormida(s) em frente ao computador poderiam ter-lhe afetado o senso de organização e ter feito com que entregasse o trabalho errado. Mas não. Não havia possibilidade. Afinal, terminara na manhã imediatamente anterior à entrega. Acompanhara a impressão com angústia, pelos ânimos lunares da máquina. Chegara atrasado na aula, mas entregara o ensaio como determinado. Por que o professor lhe dissera aquilo? Teria se confundido? Se equivocado no momento da avaliação?
O que o aluno não sabia (ou não podia crer) é o que o professor sequer passara os olhos sobre as folhas e que mentira sem quaisquer constrangimentos, afinal, era (tão)só um aluno só. E que mesmo procedendo assim com certa habitualidade, fazia questão de ser chamado pelo título antes do nome...

Dedicado a Miguel, o menino a-orientado e a Romualdo, o P(erfeito) H(ipócrita) D(edicado) que "o orienta".
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Em torno, há diferença*

Para ACP

Sexta-feira, 6 de novembro. Dia cinza e abafado, com um chuvisqueiro esporádico que não molhava nem refrescava. Nas ruas centrais, tráfego intenso de veículos sobre o asfalto úmido, do qual desprendia um vapor quente sufocante. Dia típico de Gotham City. Talvez mais caótico pela proximidade do anoitecer. Pessoas apressadas. Suadas. Rostos cansados e olhares errantes.

Entorpecida pelo calor, imaginava como ideal de prazer supremo a sensação de um banho refrescante ao chegar em casa. Dormir e, quiçá, sonhar. Sigo em direção à parada de ônibus mas não sem antes dar uma passada na biblioteca do meio do caminho. Velha conhecida. Onde sempre encontro algum “dos bons” que ninguém quis levar consigo. Subo as escadas.

Ao passar pela porta alta e suntuosa, vejo apenas brancos, bonitos e bons, sentados em cadeiras de espaldar alto e debruçados sobre antigas mesas de madeira de lei, dispostas nas laterais do balcão de entrada. Todos compenetrados na leitura dos clássicos. Grandes manuais que discutem o BGB e suas influências na teoria geral do direito civil da colônia. Ar condicionado. Clima tépido. Alguns estrangeiros e muito silêncio. Um ambiente austero, condizente com os sagrados que forma, e que evoca certa tensão. Parece que, ali, também se julga.

Livros do século XX pra lá, livros deste século pra cá. Como normalmente acontece, encontro um profano empoeirado em uma das prateleiras semi-vazias. Ninguém os dá muita importância. Pego o livro e me dirijo ao balcão de retirada. Contudo, ao passar pelo corredor lateral, entre as mesas, vejo uma ilustre freqüentadora do local. Mas, assim como eu, uma profana. Acomodada em uma das poltronas laterais, dormia. Quiçá sonhava. Sem qualquer constrangimento ou pudor ante os sagrados que seguem e produzem dogmas. O corpo relaxado, esparramado sobre o espaço da antiga poltrona estofada de pés entalhados em madeira nobre.

Ao reconhecê-la, meu corpo relaxa. Olho para ela. Olho no seu em torno. Ela estava confortavelmente à vontade no espaço. Talvez mais do que eu, quando entrei. Por outro lado, ninguém se incomodava com sua presença ali. Ao contrário, houve quem passasse por ela e lhe lançasse um olhar respeitoso, quase reverencial. Não lembro ao certo, mas talvez sorri diante da cena. De súbito, fui tomada por uma sensação de alívio. Por perceber que sempre há brechas para a profanação. Por contágio. Por uso. Em ato.

Frente a visão de uma gata de rua que, livre e sem dono, submete-se apenas às suas próprias leis e dorme na poltrona da biblioteca como se em qualquer outro lugar estivesse. Para além e aquém das leis, dos sagrados, dos dogmas e dos rituais judiciários.

Obviamente fui até ela e a acariciei antes de sair. Talvez silenciosamente lhe agradecia, pelo prazer que me proporcionara ao vê-la ali, lasciva e afetuosa, e pelas três lições que dara. Que todos os espaços sagrados estão à espera de profanação. Que alteridade é construção permanente, constante contínuo. E que a Universidade Federal em Gotham, como nenhuma outra, tem um quê de contracultural que incita à subversão. Em que pese ser instituição.


*título alusivo à obra "Em torno a diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. RJ: Lumen Juris, 2008" de Ricardo Timm de Souza.

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violência simbólica...

Garcia Marquez (2003: 53) aduz que "a procura das coisas perdidas é dificultada pelos hábitos rotineiros e é por isso que dá tanto trabalho encontrá-las". Por essa razão, e salvo entendimento diverso, entende-se que dissertar é preciso em quaisquer contextos historicamente situados, eis que constitui-se como produto cultural específico da disputa pela autoridade legítima em relações assimétricas de poder no campo científico.




Figura 1. Banheiro de mestranda (des)construindo-se dissertatisticamente.
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almoço no hotel

gotham city. quinta-feira chuvosa. julho de 20**.

[telefone toca]
- e aí, como tu tá?
- beleza. de ressaca, ainda ligada, mas nada de novo...
- porra, não tô conseguindo dormir. já tomei um banho e o resto do vinho, fumei um beck e nada. tô fritando na cama desde a hora que tu saiu. que bagulho fudido aquele de ontem, hein. onde tu pegou aquele pó, mulher?
- [risos] pergunta errada não merece resposta.
- olha só, preciso trepar. talvez me ajude a dormir...
- sério?
- sério. agora.
- olha, só vou sair daqui a uma hora, no intervalo do almoço. posso ir de lotação pra ganhar tempo. que tu acha?
- porra! e vou ter que esperar até a uma hora sem dormir? são dez da manhã! como eu vou trabalhar?
- bom, se tu não quer esperar até a uma vem pra cá e me espera no hotelzinho ali da marechal. invento um papo qualquer aqui e dô um pulo ali pra te encontrar.
- tu acha que consegue ir?
- tu acha que aguenta esperar?
- beleza. levo algo pra comer.
- beleza. leva um vinho também.
- mas não tem mais. bebi o resto que tinha de ontem...
- porra, passa no zaffari antes e pega um. ou leva um beck. e uns pão-de-queijo também. sei lá. leva alguma coisa.
- tá. vou de lotação pra chegar mais rápido.
- falou. bjo

[20 minutos depois, o telefone toca]
- e aí?
- tranquilo. já chegou?
- tô aqui embaixo. desce aí.
[quarto fuleiro em hotel barato. cheiro de umidade e mofo]
- mas que espelunca hein? isso aqui tá foda...
- fica fria, mulher. trouxe o vinho, a ponta que tava fumando e um lençol limpo.
- beleza.

[40minutos depois. suor, bochechas vermelhas, cheiro de mofo e látex no ar]
- que tu disse pra ela? [passa a ponta]
- que tinham me ligado do laboratório e tinha dado problema no exame. que eu tinha que voltar lá pra refazer.
- tu é foda. [pega a garrafa]
- já saquei qual é. ela é hipocondríaca. agora eu chego lá com estas bochas é capaz dela achar que eu chorei, que tô preocupada e me mandar pra casa.
- aí tu vai lá pra casa dormir comigo. [sorriso de satisfação]
- bem capaz! vou pra casa tomar um banho, trocar de roupa. e tu, vê se dorme. hoje é a festa do beto e parece que o lance vai ser violento. a gente tem que tá legal. [passa a ponta]
- porra, é verdade! tinha me esquecido disso. vou pra casa, durmo, depois vou pro trampo. quando sair te ligo. [passa a garrafa]
- beleza. saio da aula às onze e vou ficar pronta te esperando. cadê minha calcinha?
- sei lá. vê se não tá aí no meio do lençol.
- putz... azar! tenho que voltar logo. foda-se a calcinha. [passa a garrafa]
- espera aí que vou te levar até a portaria. [apaga a ponta]

[alguns minutos depois, passos largos, mãos dadas e beijo de despedida na esquina da salgado filho]
- vai lá guria. a gente se vê de noite.
- ok. te cuida. qualquer coisa, me liga.

[10 minutos depois, torpedo no celular]
- achei tua calcinha no bolso da minha jaqueta. perdeu morena! [sorrisinho discreto]
- tarado filho da puta! [sussurro]
 
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