O valor das ideias

A tourada era uma experiência-limite na minha incursão antropológica aqui. Eu sabia que tinha que passar por isso, independentemente de tudo que eu pensava e penso. Comprei a entrada dias antes e, no mesmo dia ironicamente, ao voltar para casa, recebi na rua um panfleto contra as touradas.





Me senti mal com aquela entrada para a abertura da Plaza de Toros de Madrid no bolso. E, obviamente, todas as questões que envolvem isso me incomodam. Quais são os limites do culturalmente aceitável e daquilo que atinge questões fundamentais? Existem questões fundamentais (como direitos fundamentais)? Quem, como, onde e porquê define isso? Se pode (ou se deve) estabelecer tais parâmetros? Bom, a antropologia tá aí para isso, (se) debatendo com essas perguntas há um bom tempo. E eu não me envolvi nesse campo à toa... tudo isso me compõe e me decompõe constantemente.

Esse texto eu escrevi no dia seguinte àquele domingo (21/03), no meu caderno, em um intervalo de aula. E pretendia postá-lo em seguida, mas não conseguia voltar a ele. Retomá-lo e reescrevê-lo no PC era sempre adiado. Seguia me incomodando. O que pude fazer por isso tudo foi assinar a petição que circula por aqui recolhendo assinaturas para pleitear a proibição das corridas de touros na comunidade de Madrid (como tentam também nas províncias de Andalucía e Catalunya). E desejar todo o tempo, com todas as minhas forças, que o novilho acertasse o toureiro. Numa delas ele acertou, mas só de susto. Só eu comemorava na platéia, enquanto todos me olhavam com estranheza. Foda-se. !Y qué se mueran los toreros!
Bom, enfim escrevi. Aí está.
* * *
Se eu estou na Europa é porque fui selecionada em um programa de intercâmbio com bolsa, que se realiza por um acordo entre colonizadores e colonizados. Única e exclusivamente por isso. Graças a isso e sem falsa modéstia ou qualquer vitimização.
Assim, se estou pagando de estudante de antropologia, brincando de etnografar o cotidiano, observando outras culturas e lugares históricos, é porque há, por trás disso tudo, o financiamento de uma instituição privada que banca essa coisa toda. E, nesse sentido, estou seguindo o caminho de todo antropólogo. Ou seja, trabalhando para grandes instituições. Afinal, desde seu surgimento, o ofício do antropólogo está impregnado com este “estar a serviço de” que, antigamente partia dos interesses dos colonizadores em “conhecer” para dominar, pilhar, explorar. Bem, até aí tudo [era] “bem”, pois essa história a gente sabe qual é... mas atire a primeira quem... Hoje em dia as coisas são mais nebulosas, mas não menos cínicas.

Enfim, foi a partir desta “cooperação” com missão catequizante dos selvagens, que a bicho dos matos do sul aqui veio parar no velho mundo europeu. E o desconforto é constante. Da minha parte, que vejo os aspectos eurocêntricos e preconceituosos deles, e da parte deles, cujo radicalismo e resistência frente à alteridade é recorrente. No trato com os estrangeiros, a antipatia é visível e injustificável. A aversão aos imigrantes acaba por englobar não só aqueles que chegam aqui de maneira ilegal para fazer os piores serviços que eles não querem fazer (não estou, frise-se tentando justificar a xenofobia deles). Mas também abrange àqueles que, assim como eu, não são totalmente turistas. Tampouco imigrantes com ânimo de se fixar aqui. Claro que as coisas sempre podem parecer como não são. E o sentido de algumas afirmações amenizado ou distorcido.

Intercambista brasileiro que vem à Espanha para, além de estudar, aprender espanhol (somos “obrigados” a isso), aprende espanhol de qualquer lugar, menos da Espanha. Basicamente porque os espanhóis pouco (ou nada) interagem com os intercambistas e, por isso, formamos nosso gueto de forasteiros. Argentinos, porto-riquenhos, equatorianos, romenos, búlgaros, franceses e, claro, brasileiros. Pode-se eleger o sotaque a seguir e tirar onda dos demais se quiser, além de diversificar as fricções interétnicas ao constatar as várias formas de “como se diz” uma coisa, ou seja, as diferentes designações regionais para um mesmo objeto. Sem dúvida, nos divertimos muito mais com os pequenos (ou grandes) “ruídos de comunicação”.

Domingo último, fui ao Museu de América, perto de casa. A sensação de desconforto e estranheza que me acompanha novamente se faz presente quando se vê (e se constata) que diversos daqueles objetos de diferentes culturais, etnias e regiões da América, foram trazidos para cá como amostras bizarras das práticas e modos de vida dos “selvagens” das colônias.
Isso sem contar os fragmentos de diários de viagens e anotações desses primeiros “antropólogos” desajeitados, que acompanhavam as expedições ao novo mundo. As práticas religiosas de índios canibais adoradores de deuses animais, o monstro de Buenos Aires (que nunca um portenho viu...) e erros grosseiros sobre a cultura peruana foram algumas das coisas que chamavam a atenção e insuflavam a revolta das índias desbotadas.




Saindo do museu, fomos à abertura da temporada de corrida de toros, na Plaza de Toros de Madrid, para assistir uma “novillada”. Um genuíno espetáculo civilizatório! Explico. A novillada é a estréia de jovens toureiros na Plaza de Toros de Madrid que, ao invés de tourearam touros adultos, o fazem com novilhos (touros com 1 ano, em média). Ou seja, seria a seleção sub-20 das touradas.
Nesta tarde, três toureiros (20 anos, 25 anos e 19 anos), oriundos de Sevilla, Segovia e Madrid respectivamente, tourearam seis novilhos. Grande quantidade de homens espanhóis (de variadas idades) e uns turistas no clima “oba-oba”. Franceses, ingleses e, claro, chinos. Exemplo de interculturalidade, estes últimos degustavam um lanche “Burger King” e tiravam fotos, enquanto não iniciava o espetáculo. Parecia uma festa.


Entre eles, a gente. Sorrisinho amarelo, tenso.
Bem, o espetáculo foi o que eu imaginava que seria. Não. Eu não imaginava. Mas temia que fosse algo que, por vezes, imaginei que fosse. E é. Na arena e na arquibancada. Eu sabia que não era “tão bonito” quanto, num primeiro momento (e por fotos), poderia parecer.
Trocando em miúdos, não sei se poderia esperar muita coisa de um “jogo” criado por “humanos” e para ser jogado com adversários que desconhecem as “regras”. Obviamente, um jogo onde não há vencedores, senão (re)afirmação simbólica e factual de poder no e através do corpo. Imposição de dor e de morte. Ouquei. Vamos por parte.

Na interior da arena, diversos homens se intercalam para fustigar um touro (no caso, um novilho) que, atordoado não sabe para onde ir primeiro. Ele arfa, sacode a cabeça. Ao eleger um alvo e persegui-lo, faz com que o homem (alvo) corra corajosamente para trás de uma espécie de biombo de madeira, fortemente reforçado, atrás do qual continua provocando o animal irado. Aborrecendo-se com as reiteradas tentativas frustradas do touro de atingi-lo e percebendo um certo desinteresse da platéia por esse episódio, dá-se ensejo a outro momento do espetáculo. Surge um homem, montado sobre um cavalo vendado, portando uma lança. Este genuíno cidadão espanhol, ocidental, branco e civilizado, é chamado “el Picador” e tem a honrosa tarefa de “picar” ou seja, atingir a base do pescoço do touro, nas costas, por algumas vezes, com a lança que traz consigo.

Este trabalho, contudo, exige um equilíbrio dobrado. Primeiro, para não cair do cavalo, enquanto introduz (e gira) a lança no lombo do touro que, irado e "cego" de dor, golpeia invariavelmente o cavalo que, vendado e desconhecendo totalmente o que se passa, está protegido por todos os lados com uma capa acolchoada (ah, bom!). Segundo, porque não pode produzir uma ferida demasiado profunda, o que faz com que a tourada perca muito do seu “vigor”, eis que o touro sangra muito e, fraco, logo cai sobre os joelhos e encurta o tempo do espetáculo do toureiro.




Como o juiz no futebol, o picador é uma figura determinante no “jogo” e o desse domingo de fato fora. Bastante criticado por “pretender matar os novilhos”, teve de agüentar declarações como “Es solo un novillo”, “el picador no sabe picar” ou “Yo pico mejor en mi casa que el picador aqui”, dos espectadores ávidos por “tourada arte”.
Depois do picador, o touro segue sendo “provocado” pelos homens do interior da arena. Dois deles, lhe “aplicam” as “banderillas”, espécie de espada enfeitada com fitas brancas e vermelhas, cuja ponta possui um tipo de “anzol” que garante que, uma vez cravado no lombo do animal, dele não se desprendam. A partir desse momento, pois, entra em cena a estrela do dia. O toureiro. E dá início ao bailado com o touro (ferido, mas abstraia isso por ora...).

A postura impecável e os movimentos precisos. O sacudir da capa vermelha diante dos olhos do animal é um verdadeiro bailado e demonstração de coragem, frente à fera que tem diante de si. Gritos e movimentos de cabeça, fustigando o touro contra si, curvas e inclinações do corpo, deixando o tronco o mais próximo possível do animal, de maneira que o sangue que lhe corre do lombo, tinge sua roupa na região pélvica e ventral, seguido por um “dar as costas” à besta com ar de desdém. Essas são (algumas das) indicações mais explícitas de sua força e de seu domínio sobre o novilho. Assim segue a tourada.



Depois de tanto “desafiar” seu oponente que, já com poucas forças, língua pra fora da boca, zonzo de dor e ira, desiste de correr atrás da capa, o toureiro “acaba o jogo” com a introdução da última arma que falta. Uma espada de prata que tem de atingir, de um só golpe, o coração do animal, através da lateral de seu pescoço.

Após o golpe, aturdido, o touro não sabe mais para onde ir, nem o que fazer. Olha seu entorno, arfa, tonteia, enquanto os demais homens na arena tremulam suas capas para “distraí-lo” um pouco mais da morte que lhe destinaram. Diante de si, o toureiro esguio e longilíneo o observa. Altivo como um rei. O touro cai sobre seus joelhos. Não há mais jogo a jogar. Tomba na lateral. Suas pernas projetam espasmos. O toureiro dá sua última mirada antes de dar-lhe as costas. Sai em direção ao centro da arena. Um dos outros homens termina de matá-lo com uma espécie de adaga. Já não vive. A música recomeça. O toureiro, no centro da arena, é ovacionado com gritos e acenos de lenços brancos por uma platéia extasiada. Enquanto isso, entra uma parelha de cavalos, na qual são atrelados os chifres do touro tombado, que é arrastado em direção à saída da Plaza de Toros. No solo, uma trilha de sangue é desenhada e imediatamente limpa por duplas de homens que invadem a arena para dar seguimento ao (limpo) espetáculo. Segue o animado pasodoble tocado por uma banda de música. A próxima tourada vai começar...



5 comentários:

Kado dijo...

Pervertida sanguinária!

Juriká dijo...

Já não posso evitar o choro.

Achutti dijo...

só mesmo um olhar antropológico poderia narrar um evento desses com tamanha descrição de detalhes.
increíble!

andré brayner farias dijo...

Excelente! Me lembrei dos detalhes da minha experiência com as touradas, já faz 5 anos, na mesma plaza de toros. Também hesitei bastante, mas fui. me lembro que não sabia se olhava a tourada ou a platéia sedenta e babando a cada fincada do toureiro no pobre animal. me lembro de dois caras que discutiam a "covardia" do toureiro que não conseguia chegar mais perto e fincar bem no meio, no alvo, e gesticulavam o tempo inteiro em sinal de reprovação. Inacreditável a bestialidade humana...
andré brayner farias

Ana Rovati dijo...

Jana! Encreíble! Tua narrativa tá linda. Quase chorei daqui de imaginar a cena. Parabéns. Saudades.

 
Copyright © oblogueobliquo