Em torno, há diferença*

Para ACP

Sexta-feira, 6 de novembro. Dia cinza e abafado, com um chuvisqueiro esporádico que não molhava nem refrescava. Nas ruas centrais, tráfego intenso de veículos sobre o asfalto úmido, do qual desprendia um vapor quente sufocante. Dia típico de Gotham City. Talvez mais caótico pela proximidade do anoitecer. Pessoas apressadas. Suadas. Rostos cansados e olhares errantes.

Entorpecida pelo calor, imaginava como ideal de prazer supremo a sensação de um banho refrescante ao chegar em casa. Dormir e, quiçá, sonhar. Sigo em direção à parada de ônibus mas não sem antes dar uma passada na biblioteca do meio do caminho. Velha conhecida. Onde sempre encontro algum “dos bons” que ninguém quis levar consigo. Subo as escadas.

Ao passar pela porta alta e suntuosa, vejo apenas brancos, bonitos e bons, sentados em cadeiras de espaldar alto e debruçados sobre antigas mesas de madeira de lei, dispostas nas laterais do balcão de entrada. Todos compenetrados na leitura dos clássicos. Grandes manuais que discutem o BGB e suas influências na teoria geral do direito civil da colônia. Ar condicionado. Clima tépido. Alguns estrangeiros e muito silêncio. Um ambiente austero, condizente com os sagrados que forma, e que evoca certa tensão. Parece que, ali, também se julga.

Livros do século XX pra lá, livros deste século pra cá. Como normalmente acontece, encontro um profano empoeirado em uma das prateleiras semi-vazias. Ninguém os dá muita importância. Pego o livro e me dirijo ao balcão de retirada. Contudo, ao passar pelo corredor lateral, entre as mesas, vejo uma ilustre freqüentadora do local. Mas, assim como eu, uma profana. Acomodada em uma das poltronas laterais, dormia. Quiçá sonhava. Sem qualquer constrangimento ou pudor ante os sagrados que seguem e produzem dogmas. O corpo relaxado, esparramado sobre o espaço da antiga poltrona estofada de pés entalhados em madeira nobre.

Ao reconhecê-la, meu corpo relaxa. Olho para ela. Olho no seu em torno. Ela estava confortavelmente à vontade no espaço. Talvez mais do que eu, quando entrei. Por outro lado, ninguém se incomodava com sua presença ali. Ao contrário, houve quem passasse por ela e lhe lançasse um olhar respeitoso, quase reverencial. Não lembro ao certo, mas talvez sorri diante da cena. De súbito, fui tomada por uma sensação de alívio. Por perceber que sempre há brechas para a profanação. Por contágio. Por uso. Em ato.

Frente a visão de uma gata de rua que, livre e sem dono, submete-se apenas às suas próprias leis e dorme na poltrona da biblioteca como se em qualquer outro lugar estivesse. Para além e aquém das leis, dos sagrados, dos dogmas e dos rituais judiciários.

Obviamente fui até ela e a acariciei antes de sair. Talvez silenciosamente lhe agradecia, pelo prazer que me proporcionara ao vê-la ali, lasciva e afetuosa, e pelas três lições que dara. Que todos os espaços sagrados estão à espera de profanação. Que alteridade é construção permanente, constante contínuo. E que a Universidade Federal em Gotham, como nenhuma outra, tem um quê de contracultural que incita à subversão. Em que pese ser instituição.


*título alusivo à obra "Em torno a diferença: aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea. RJ: Lumen Juris, 2008" de Ricardo Timm de Souza.

1 comentários:

Clóvis Bujes dijo...

Ahhh não... me emocionei... não estava imaginando que era o que era... imaginei uma pessoa e qual minha surpresa!!! Muito bom! Muito bom meiiismo... Tudo muito "linno"! Enchi os olhos d'água...

 
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