O Reveillon e os Porcos



“A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o disco que está tocando agora.”


Essa frase é de George Orwell e pode ser encontrada no prefácio à 1ª edição inglesa (de 1945) da sua obra A revolução dos bichos (Companhia das Letras, 2007). No prefácio da edição ucraniana, é possível conhecer um pouco mais da trajetória do autor e do contexto político em que ele estava imerso no período em que escreveu o livro. Ambos prefácios acompanham a edição que (re)li (acima).

A história narra a revolta dos animais da Granja Solar que, cansados de serem explorados pelo homem, decidem unir-se para, sob o comando dos porcos, expulsar o proprietário da granja (Sr. Jones) e sua esposa. Com isso, cada a animal passaria a produzir para a distribuição igualitária entre os demais e todas as decisões relativas à Granja (que passa a chamar-se Granja dos Bichos) são tomadas em assembléias com a participação de todos e sem a interferência e/ou gestão externas.


A partir desse entendimento trazido pelo porco Major (que morre dias depois de instigar a Revolução), os bichos acreditavam que todos os hábitos do Homem eram maus. Com isso, o Animalismo estipulou algumas normas: não morar em casas, dormir em camas, usar roupas, beber álcool, fumar, usar dinheiro, comerciar e, sobretudo tiranizar outros animais, pois todos os animais são iguais. Tais regras tornaram-se os Sete Mandamentos escritos no celeiro e seguidos por todos. Insuflados pelas novas ideias, aprendem a Canção dos Bichos da Inglaterra, hino da Granja do Bichos, e adotam o slogan “Quatro Patas Bom, Duas Patas Ruim”. Ao homem é atribuído o status de inimigo e razão de todos os males pelos quais os animais passam. Livrando-se do contato e da exploração humana, todos os animais seriam, pois, verdadeiramente livres, ricos e felizes.


Ao longo da história, contudo, os porcos na liderança da organização da propriedade adotam um “novo jeito de governar” e algumas normas vão sofrendo pequenas alterações e ressalvas para, ao final, serem resumidas em única lei (a máxima desta obra de Orwell): “TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS”.


Desde o modelo de tomada das decisões, gestão de recursos e divisão de alimentos até a divulgação das informações e a criação do terror na figura do grande inimigo “Bola-de-Neve” (Porco que passou de herói condecorado da Revolução à inimigo temido que supostamente aliou-se aos Homens), a obra instiga por sua atualidade.


Espécie de sátira e ataque a Stalin e à Revolução Russa, o texto teve sua publicação recusada por diferentes editoras devido ao sentimento de “devoção” à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), nutrido sobretudo pela mídia e a intelligentsia britânica da época. Caracterizada pelo autor como ortodoxia dominante daquele período, esta comunidade de sentidos redundava na admiração acrítica da então Rússia Soviética e na ilusão de haver existido, de fato, um país socialista.


Qualquer semelhança com os nossos tempos tão modernos não é mera coincidência e o fato de que “a defesa da democracia envolve a destruição de qualquer independência de pensamento”, serve para questionar (ainda hoje) em que medida as formas de produção de sentido atuam para sedimentar antigas práticas e percepções, o que o autor denunciava já no prefácio da obra. Ou seja, a tendência de defender-se a democracia através de métodos totalitários e a iminência de um estado de exceção tornar-se regra.


Para porcos socialistas ou capitalistas, o livro é uma leitura mais que necessária em tempos tão selvagens. O desconhecimento ou (efeito de) esquecimento da história da Revolução Russa ou do contexto global da década de 40 do século XX não prejudicam em nada a leitura ou o entendimento da narrativa, uma vez que é perfeitamente possível reconhecer personagens e pensamentos contemporâneos bastante semelhantes àqueles presentes na época em que o texto fora escrito.


E a leitura pode tranquilamente ser feita sob o sol de duas tarde quentes à beira-mar, nas quais temos lindas porcas deliciosamente fritando (à pururuca) sob o sol escaldante de verão, enquanto cavalos vendem cangas e ovelhas balem anunciando seus queijos coalhos. Como Benjamin faria, foi o que eu fiz.


Em tempo: transgredimos a tradição novamente. Não comemos porco no Ano Novo.

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