A(s) Ciência(s) a serviço de que(m)? Ou para (des)entender o (in)humano

J.C.M.S., 32 anos na época do fato, foi interpelado pela Polícia Rodoviária Federal na BR-158, entre os Estados de Mato Grosso e Tocantins, por excesso de velocidade. Ao verificar os documentos do veículo, o patrulheiro constatou o IPVA exercícios 2013, 2014 e 2015 vencidos, motivo pelo qual o veículo fora recolhido. O condutor apresentava alterações na fala, confusão mental e agressividade, indicando uso de substância entorpecente ilícita, constatada no exame toxicológico de fls. 10 e identificada como sendo “globiscamina”, motivo pelo qual fora autuado em flagrante por excesso de velocidade e direção sob uso de substância entorpecente. Em revista efetuada no interior do veículo foram encontradas 18 caixas de referida substância, 34 ampolas cujo conteúdo não possuía identificação, 54 seringas descartáveis e uma bolsa térmica. O acusado alegou que referida substância era utilizada para uso pessoal, como analgésico, eis que possuía neurastenia crônica. Afirmou desconhecer estar acima do limite de velocidade, bem como possuir impostos do veículo não pagos.

Lavrado o flagrante, o inquérito policial foi encaminhado ao Ministério Público que procedeu com a denúncia. O juízo recebeu a denúncia por tráfico ilícito de entorpecentes. O acusado foi citado, interrogado e o processo transcorreu em normalidade. Nos autos constatou-se a materialidade dos fatos alegados, conforme exames juntados. Quando interrogado, o acusado confessou estar de posse de referida substância, alegando, no entanto, que era para uso próprio. Comprovada a autoria e materialidade, fora acolhida a acusação e condenado o denunciado. Na sentença, fica evidente a grande reprovabilidade da conduta, totalmente nociva ao meio social, bem como a personalidade violenta do acusado que reagira com resistência e agressividade à autoridade policial. Conduta social desabonadora, ao expor a saúde pública a perigo, face ao delito que praticou. A pena imposta foi de 8 anos e 5 dias de prisão em regime inicial fechado.

Iniciou o cumprimento da pena na Cadeia Pública da cidade de Valas/MT, em cela individual, dividida com outros 12 reclusos. Após 7 meses de cumprimento, o apenado passou a desenvolver atitude de isolamento e histeria, recusando alimentação e tendo crises recorrentes de choro. Avaliado pela junta médica e psiquiátrica, foi constatado quadro depressivo agudo, com relato de ilusões auditivas mais frequentes no período noturno. Recomendada a conversão da pena privativa de liberdade em medida de segurança, pelo prazo de 3 anos prorrogáveis, a ser cumprida em hospital psiquiátrico forense daquela cidade.

Encaminhado ao hospital de custódia, o internado relata no exame psiquiátrico dores no peito, fadiga, falta de ar e crises de pânico, desde que fora recolhido na Cadeia Pública. Alega que suas dores de cabeça agravaram-se e que lhe eram fornecidas 2 aspirinas por semana. Informa episódios noturnos com pesadelos e ilusões auditivas utilizados como justifica de suas duas tentativas de suicídio.

Quanto ao crime praticado, nega os fatos elaborando quadro paranóide. Afirma tratar-se de um antropólogo, que desenvolve uma mapeamento genético das comunidades indígenas do Parque Nacional do Xingu e que está sendo perseguido pelas autoridades locais. Diz que a substância encontrada consigo era o medicamento que utilizava para a neurastenia e que, mesmo em grande quantidade, era para consumo próprio. Afirma que as ampolas, seringas e bolsa térmica encontrados em seu poder era seu material de pesquisa, utilizados para a coleta de sangue de seus pesquisados. Fala com fluidez e desenvoltura e não demonstra arrependimento dos fatos praticados. Alterna uma postura vitimizada com um discurso rebelde e ameaçador. Relata que mudou-se para o Mato Grosso aos 15 anos para trabalhar, deixando sua mãe e irmão no interior de Quaraí/RS.

Quanto ao histórico de vida, há registros de que não conheceu o pai, que foi morto antes de seu nascimento. A mãe trabalhava em um bar na beira da BR-290 e foi presa duas vezes por desacato à autoridade. Perdeu o contato com os familiares a mais de 8 anos, não sabendo precisar onde encontrá-los. Não estabeleceu outros laços familiares, não casou ou possui filhos. Seu único relacionamento afetivo foi aos 24 anos e durou cerca de 9 meses, quando foi rompido sob suspeita de traição, causando-lhe sério trauma a separação. Desde então, passou a morar sozinho, em companhia de 6 gatos.

Através de personalidade rude, demonstra ser arredio e amargurado. Teve diversas tentativas de trabalho, com improdutividade profissional, em tarefas simples e tacanhas. Envolvia-se em brigas, discussões e passou a beber e frequentar bares em regiões de prostituição. A vivência de rejeição e ausência de vínculos afetivos o impulsionaram para a vida criminosa, não possuindo juízo crítico quanto aos atos que pratica. Recita poemas de Fernando Pessoa, canta tangos de Astor Piazolla, adora à Raul Seixas e assedia funcionárias. Investiu contra uma enfermeira, precisando ser medicado e isolado por duas semanas. Entretanto, nega os fatos afirmando que ambos mantêm um romance. Demonstra insensibilidade e frieza no trato com os demais internos, retórica estereotipada do que entende por amor e liberdade, discurso desafiador e visão instrumental e objetificante das demais pessoas. Personalidade manifestamente perigosa, de difícil recuperação, ainda não beneficiado com o tratamento penitenciário. Inapto para o convívio em sociedade.

Recomendo a administração diária de 33ml de globiscamina por via intravenosa, sedação e doses de 500mg de ácido acetilsalicílico, via oral, diárias. Sugiro a restrição de acesso do internado aos livros, jornais e ao rádio como forma de auxiliar no seu tratamento terapêutico, diminuindo, assim, a recorrência dos delírios.

Júlio César Teophilus
Egologista
CREgo 78.541

Valas/Mato Grosso, 6 de julho de 2048.

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Durante o mestrado, fiz duas cadeiras no pós da psicologia. Uma das experiências mais ricas do período, aliás. Além dos colegas serem pessoas incríveis, com os quais compartilhei bons debates e momentos únicos, as aulas eram muito afudê. Em um dos meus surtos, resolvi arriscar e escrever este texto. Estava preparada para levar umas críticas mais duras, óbvio, já que tava metendo a caneta na ferida deles, embora soubesse que não seria linchada por um grupo de psicólogos radicais e a professora não é nenhuma cognitivista-comportamental-behaviorista-or something. Para minha surpresa e honra, não só não fui criticada, como me foi pedida autorização para leitura e discussão do texto em aula. Boa lembrança que me vem hoje, quando o reencontrei entre minhas tralhas...

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