sentir por soleá y vivir por flamenco




Entre saudades e afazeres eu levo a vida madrileña (sim, começo a sentir falta de algumas pessoas e/ou coisas). Consegui ter problema de colisão de horários na faculdade, razão porque estou buscando outra disciplina para cumprir minha obrigação de fazer os 24 créditos mínimos. Já que o professor de antropologia aplicada resolveu mudar o horário da aula informalmente, eu não tenho nada a fazer senão lamentar. Colide com a minha disciplina de antropologia urbana que promete bons textos e reflexões em torno da temática. Escola de Chicago, diversidade urbana, juventude, migrações, formação de grupos urbanos e eu não vou me estressar fazendo cadeira pra cumprir tabela. Saí em busca de outros cursos. Literalmente, estudo propostas.

(Es)Carla já tinha me tentado com uma cadeira da letras. Literatura Hispanoamericana e só prazer literário: Borges, Cortázar, Garcia Marques. Mas terei que sacrificar minhas sextas-feiras de folga da UAM. O professor, contudo, não goza de boa fama. Genioso e exigente. Em se tratando de área na qual sou duplamente forasteira, fiquei apreensiva. Mas fui conferir na sexta passada (minha sanha camicase sempre presente). Pra amaciar o lombo, comecei a ler os contos de Borges, indicados pelo cara e emprestados pela chica.

Saí meio sonolenta para fazer nosso esquema metrô-renfe-campus. Desci em Nuevos Ministérios para pegar o renfe junto com a multidão que vem e vai diariamente. Hoje, excepcionalmente, o cara do violino se sobressaiu na minha percepção matutina pela música que executava. Imediatamente, ela me remete ao Teatro Renascença, ao cheiro incômodo da máquina de fazer fumaça ao pano preto das pernas da coxia. Laís, Kalu, a bata de cola azul.

Me soou um aviso, um puxão de orelha, um chamado da consciência. Não adianta, eu (não) estou aqui e lá. Algumas coisas unem e separam esse dois mundos. E o flamenco é uma delas. “Hoje, depois da aula, eu não volto pra casa. Vou à escola de Flamenco.” Decidido e combinado comigo mesma. Peguei o trem de volta e desci na estação Sol (correspondencia con las líneas 1, 2 y 3 de metro y cercanías). Tomei a linha 2 até Antón Martín.

Bueno, eu sabia o endereço e o número, mas isso é o que menos importa, pois há que se dominar a arte ninja da lógica da numeração das ruas de Madrid. Aliás, quem souber, por favor, me explica, pois já tem 1 mês que estou aqui e ainda não descobri como a sequência 1, 2, 3, 18, 23, 35, 4, 7, 68 pode fazer sentido (sem nada mais no meio). Pois bem, dessa vez não foi diferente. Repassei a quadra umas três vezes, indo e vindo, checando a numeração. Tinham quase todos os números (fora da ordem) exceto (claro!) o que eu buscava. Já me acostumei com a extraordinariedade do banal na minha vida.
Contudo, enquanto eu procurava, olhos, ouvidos, nariz atentos. Um bairro central de Madrid, com ruas estreitas e grande circulação de carros e pessoas, sempre tem muito a oferecer em termos de observação. Espanhóis, turistas, migrantes, trabalhadores e ociosos. Um mercado com bancas variadas, recebendo peixes e outros frutos do mar em gamelas brancas, cercados de gelo. Na calçada, senhoras conversam e gesticulam efusivamente enquanto escolhem suas compras. Bares com balcões cheios de homens que fumam, bebem e conversam.
Cansada de ir e vir na mesma quadra, olhando pros lados, procurando no vazio como uma puta decadente, resolvi me certificar de que estava no lugar certo. Perguntei ao atendente da banca do peixe. Ele prontamente saiu detrás do balcão, enxugando as mãos no avental, e veio me passar as instruções. Sim, estava certa. O número que eu buscava É o mercado. A Escola fica no primeiro andar do mercado, para a minha surpresa em um primeiro momento. Na verdade, não me pareceu que o mercado fosse maior do que aquilo (e é). Sequer que no andar de cima houvesse uma escola de flamenco (e há). Subi as escadas e entrei no prédio. Lá dentro, uma infinidade de bancas, com cores e cheiros variados. Dei uma volta pelos corredores antes de subir o outro lance de escadas. Peixes, queijos, vinhos, carnes de caça e de porco, churros, frutas tropicais e secas, sementes. Uma diversidade de coisas que aguçam os sentidos.

Ao subir os primeiros degraus para o segundo lance já era possível ouvir o som das castanholas. Arrepio pelo corpo. Frio na barriga. A cada degrau, o som se aproximava. Ao final do segundo lance, uma porta. Diante dela, duas mulheres se alongam no corrimão, enquanto fumam e conversam rápido. Esguias e belas. Maquiadas e de coque. Colant, saia de ensaio, meia-calça e sapatos de baile.

Ao abrir a porta, senti o cheiro do café passado da Kalu na Lenita. Estou no lugar certo. Como na primeira vez em que estive na Plaza Mayor e fui arrebatada por um sentimento de presença ao ouvir o “Adágio”, executado no violino por um artista de rua, e ver diante de mim Laís e Alexandra dançando com todo o tesão e a leveza que lhe são peculiares. Espíritu Alumbra. Elas estão lá e aqui também. Fantasia é a vida...

3 comentários:

Anónimo dijo...

Me emocionei...

Anónimo dijo...

A música de Pachelbel: Canon em D Maior é uma das minhas preferidas e que me emociona... A mim e ao gato... eu sei! Ele conhece e por motivo ou por outro se emociona! É linda e profunda... Só mesmo em Madrid pro cara do violino ter a sensibilidade de brindar as pessoas com Pachelbel...
Bus (bem atento) e eu! - Besos.

Anónimo dijo...

Quanto ao texto: divino!
Bus (agora já não tão atento) e eu!

 
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